ONU aprova envio de missão externa ao Haiti seis anos após o fim da Minustah

Resolução tensionou Conselho de Segurança e reviveu dilemas antigos; Brasil avalia ajudar com treinamento da polícia

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Homens correm durante protesto contra a violência de gangues no Haiti

Homens correm durante protesto contra a violência de gangues no Haiti Ralph Tedy Erol - 14.ago.23/Reuters

São Paulo

Seis anos após o fim da Minustah, a missão da ONU protagonizada por militares brasileiros, o Haiti voltará a ter a presença de forças externas em seu território para frear aquela que, hoje, é considerada a mais grave crise humanitária das Américas.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou nesta segunda-feira (2), após semanas de uma polarizada negociação, o envio de uma missão multinacional para ajudar a polícia do país caribenho a combater as gangues armadas e proteger a infraestrutura urbana.

O Brasil, membro rotativo e responsável pela presidência do conselho ao longo deste mês de outubro, votou a favor da resolução redigida por Estados Unidos e Equador, assim como outros 12 países-membros. China e Rússia, pontos de conflito no grupo, abstiveram-se.

Brasília pondera ajudar no treinamento da polícia haitiana de maneira pontual, mas interlocutores relatam que ainda há dúvidas sobre como viabilizar a parceria, que poderia se dar por meio do envio de quadros a Porto Príncipe ou recebendo oficiais haitianos no Brasil para treiná-los.

Diferentemente da Minustah, a nova missão não contará com os capacetes azuis e assiste à chefia da ONU, na figura do português António Guterres, buscar maior distância dos meandros da missão, que será liderada pelo Quênia após a oferta do presidente William Ruto.

Nem por isso –ou justamente por isso– deixa de haver preocupação sobre possíveis violações de direitos humanos iminentes a missões do tipo ao redor do mundo. Anos após a Minustah, são documentados os episódios de abuso sexual cometidos por soldados contra haitianas, além da chegada da cólera por meio dos soldados.

Ainda assim, o envio da missão foi uma demanda reiterada em alto e bom tom pelo premiê do Haiti, o impopular Ariel Henry, pressionado a colocar em prática uma agenda que prepare o terreno para eleições –a nação não conta com nenhuma autoridade eleita atualmente.

A atual missão terá caráter distinto da missão de estabilização que esteve no país de 2004 a 2017, durante um dos episódios mais marcantes da história haitiana –o terremoto que em 2010 deixou mais de 200 mil mortos –além das dezenas de milhares de locais, estavam entre os mortos 18 soldados brasileiros e a missionária Zilda Arns.

Desta vez, a resolução do Conselho de Segurança aprova o envio de uma missão policial –não militar. O arranjo tampouco tem caráter intervencionista, prevalecendo a ideia de que a Polícia Nacional Haitiana será apenas apoiada e treinada pelas forças estrangeiras.

Ainda serão precisos meses para que os primeiros policiais comecem a desembarcar em Porto Príncipe. Otimista, o governo do Quênia diz trabalhar com um prazo que vai do final deste ano ao início de 2024. As declarações, no entanto, deixam de lado a preocupação latente sobre quantos países mais se somarão à missão.

A nação do leste da África ofereceu mil policiais —além do comando técnico da operação. Países caribenhos também ofertaram agentes, mas a soma das forças ainda não chega a 2.000, cifra considerada mínima para que a operação tenha chances de ser bem-sucedida.

A expectativa era a de que, com o aval da ONU, mais países se somem.

A despeito das diferenças, a atual missão multinacional, assim como a Minustah, foi aprovada no guarda-chuva do Capítulo 7 da Carta da ONU. Ponto de conflito entre os membros do grupo, o mecanismo libera o uso da força, sob o aval do conselho, quando isso for necessário para "restabelecer a paz e a segurança internacionais".

Pequim e Moscou marcaram as diferenças em seus discursos durante a sessão desta segunda-feira, denotando críticas à adoção do capítulo e pedindo maior responsabilização por possíveis abusos.

A discordância russa e chinesa também tem como pano de fundo fatores alheios à crise humanitária no Haiti. Do lado de Moscou, pesa a tensão com o Ocidente devido à Guerra da Ucrânia, o que escala a dificuldade para consensos. Do lado de Pequim, o fato de o Haiti ser um dos poucos países que reconhecem Taiwan como autônoma.

A barganha dos dois países, que no final se abstiveram, conseguiu acrescentar ao texto da resolução, nos últimos dias, o alargamento das sanções contra aqueles envolvidos no tráfico de armas para o país. A medida pesa especialmente para os EUA, origem da maior parte do armamento que chega à nação caribenha saindo da Flórida.

Outrora protagonista, Brasil agora não quer destaque

Conforme a Folha relatou, o Brasil manifestou desde o início das negociações que não pretendia assumir protagonismo no envio de forças de segurança, ainda que pudesse enviar quadros específicos de especialistas para ajudar no conhecimento técnico.

Brasília também diz querer reviver projetos de cooperação técnica, em especial na área da saúde, hoje paralisados pela violência urbana. O governo também pretende criar um canal de diálogo com o Quênia para compartilhar o conhecimento adquirido nos anos de Minustah.

O cálculo, disse em junho o assessor especial do presidente Lula (PT) Celso Amorim, é de que o Brasil se frustrou ao depositar forças na Minustah e ter um retorno tímido de outras nações ocidentais que haviam prometido ajuda. "O Brasil ficou escaldado em função da falta de empenho da comunidade internacional", disse ele na ocasião.

Falando nesta segunda-feira em Nova York pouco antes da aprovação da resolução, o embaixador do Brasil na ONU, Sérgio Danese, disse que o país está "avaliando a forma de ajudar". "É preciso aprender as lições do passado; temos uma experiência a compartilhar com aqueles que vão colocar forças policiais no terreno. Mas nós queremos ver como isso vai sendo estabelecido."

Danese disse que a ideia é ajudar o país na mitigação das causas mais profundas da violência e na recomposição das instituições, como o restabelecimento do processo democrático. "Senão, vamos apenas adiar ou ter uma solução temporária, e os problemas voltam depois."

Segundo os últimos números compartilhados pelo escritório da ONU no Haiti, o Binuh, com a reportagem, ao menos 5.162 pessoas foram vítimas diretas da violência das gangues neste ano —destas, 2.907 foram assassinadas, sendo 383 delas linchadas.

Colaborou Fernanda Perrin, de Nova York

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