'Preciso de ajuda para tirar meus sete filhos de Gaza', diz brasileira

Umm Abdo, 41, que era casada com filho de fundador do Hamas, descreve 'inferno total' no território palestino e afirma que população odeia facção, mas tem medo

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São Paulo

Desde o início da guerra em Gaza, o Itamaraty conseguiu retirar de lá 113 brasileiros e parentes próximos. Mas Umm Abdo, 41, continua no território palestino, sob constante bombardeio. Diz que só sai com seus sete filhos, de 4 a 17 anos, também cidadãos brasileiros.

Ela passa por um drama bastante particular, comparado ao dos outros brasileiros que conviviam com as privações do conflito. Foi casada por quase 20 anos com Said Dukhan, filho de Abd al-Fattah Dukhan, um dos fundadores do Hamas, morto no ano passado. Os filhos estão hoje sob a guarda de Said.

Umm Abdo mantinha-se em silêncio desde 7 de outubro, quando ataques terroristas do Hamas mataram cerca de 1.200 israelenses —a resposta militar de Tel Aviv já deixou 22 mil mortos, a maioria mulheres e crianças. Passados quase cem dias, ela aceitou contar sua história à Folha, em relato colhido durante diversos dias devido às frequentes interrupções no fornecimento de eletricidade, internet e telefone em Gaza. Por segurança, pediu que seu nome verdadeiro não fosse revelado ("Umm Abdo" quer dizer "mãe do Abdo", em árabe). Tampouco aceitou ser fotografada.

Mulher de costas usando hijab olha para longe enquanto leva a mão ao rosto
Ilustração que retrata Umm Abdo, brasileira que vive em Gaza; por temer pela sua segurança, ela não aceitou ser fotografada - Catarina Pignato

Nascida em Criciúma (SC), ela cresceu no Rio Grande do Sul e se converteu ao islã após ler sobre a religião em um livro escolar, ainda criança. Foi para Brasília e começou a frequentar uma mesquita. Em 2005, mudou-se para a Cidade de Gaza e se casou com Said, quando tinha 22 anos. Diz que não sabia da ligação do marido com o Hamas.

A história de amor logo virou tragédia. Umm Abdo afirma ter sido vítima de violência doméstica por anos, o que levou ao divórcio em 2023. Ela evita dizer onde vive, para que o ex-marido não descubra. A reportagem não conseguiu entrar em contato com Said.

Umm Abdo vem tentando tirar os filhos de Gaza há algum tempo. Para isso, porém, é necessário o consentimento do pai —algo impensável neste momento. A mesma exigência é feita no Brasil para viagens internacionais, que devem ser autorizadas pelos dois genitores, ainda que só um acompanhe o menor.

A brasileira pede que, mesmo assim, o Itamaraty ajude a retirar a família. Ao menos para a Cisjordânia, que também é um território palestino. "Meus filhos choram todos os dias e imploram para sair." Enquanto isso, diz, o pai "bate, grita e espanca sem piedade". Ela enviou à reportagem fotografias de crianças com hematomas no corpo, que afirma serem seus filhos.

Procurados, diplomatas que acompanham o caso reiteraram a posição do Itamaraty. O governo considera que a retirada das crianças sem o aval do pai configuraria um sequestro de menor. A representação diplomática brasileira está em contato com Said.

Outrora parte de uma família de profunda ligação com o Hamas, Umm Abdo agora critica abertamente a facção terrorista, mas sem poupar Israel. "As pessoas odeiam o Hamas mais do que odeiam Israel. Por isso achamos um absurdo o que Israel está fazendo com a gente. O Hamas não pediu nossa autorização para fazer a merda que fez. Por que é que nós temos que pagar o preço por um crime que não cometemos?". A seguir, o depoimento de Umm Abdo.

Fui viver na Faixa de Gaza em 2005 porque eu me apaixonei pelo Said, meu ex-marido, e acreditava que ele também me amasse. Por isso, deixei a família, amigos, tudo para trás. Não acho que o amor seja uma coisa que a gente possa controlar. Simplesmente acontece.

Quando a gente se conheceu, o Said me disse que não poderia morar comigo no Brasil. Ele falava que tinha medo de, ao sair de Gaza, ser detido por Israel. Por isso, aceitei viver com ele aqui.

Não sabia que o pai dele era um dos fundadores do Hamas. Nunca me falou nada. Não é uma coisa que você diz para alguém que você quer conquistar, principalmente ela sendo estrangeira. O Hamas não é um grupo que todo o mundo ama. É uma facção considerada terrorista internacionalmente. É odiado em todo o mundo —mesmo na Palestina.

Soube da relação deles com o Hamas aos poucos. Quando minha primeira filha tinha uns cinco meses, em 2006, comecei a entender melhor a língua árabe. Nas comemorações do Hamas, as pessoas vinham na porta de casa fazer festa para o meu sogro, Abd al-Fattah Dukhan. Era tudo estranho. No começo, achava que fosse só mais um simpatizante do grupo. Só depois de muito tempo fui entender a força que ele tinha.

Abd al-Fatah Dukhan (esq.), um dos fundadores do Hamas, ao lado de Mahmoud al-Zahar, em 2006; morto no ano passado, Dukhan foi sogro de Umm Abdo
Abd al-Fatah Dukhan (esq.), um dos fundadores do Hamas, ao lado de Mahmoud al-Zahar, em 2006; morto no ano passado, Dukhan foi sogro de Umm Abdo - Mohammed Salem - 17.fev.2006/Reuters

É uma informação que eu sempre escondi da minha família, justamente para não piorar ainda mais a visão que eles tinham do homem que era meu marido. Descobriram isso quando você escreveu sua reportagem em 2014, que achei muito sensacionalista [naquele ano, a Folha conversou com Umm Abdo na casa dela, meses após outro conflito com Israel].

Gaza é diferente do Brasil, tão cheio de verde, flores. Aqui é cinzento, com quase ou nenhuma vegetação. Em sua grande maioria, são campos de refugiados. Mas é aconchegante. As pessoas são maravilhosas e, assim como no Brasil, me sinto em casa. As lembranças que tenho daqui são infinitas. De certa maneira, não foi difícil viver duas décadas em Gaza por causa desse calor humano.

Tive sete filhos com o Said. O bom de tê-los criado em Gaza foi a segurança que nós temos. É estranho falar isso em um lugar que está sempre sendo bombardeado. Mas, tirando as guerras, Gaza é um lugar muito seguro. Você não tem medo de sair na rua, em um lugar escuro. As mulheres saem na rua com joias de ouro. Não existe roubo. O que é bem estranho para mim, que fui criada no Brasil.

Meus filhos não tiveram uma infância como os outros. Não por causa das guerras, mas porque meu ex-marido tem prazer em fazê-los sofrer. Tanto que, quando começou esta guerra, ele não saiu com meus filhos de Gaza nem me deixou levá-los embora. Diz que prefere que morram aqui a irem embora. Não entendo isso. Todos aqui sonham em ter a oportunidade de salvar seus filhos, para que vivam. Ele, não.

Você me pergunta como era conviver com o meu ex-marido. Não sei se choro ou dou risada. Meu casamento era uma farsa. Eu vivia sozinha. Resolvi pedir o divórcio por isso e também para proteger os meus filhos.

Ele tentou me matar dando um remédio de que tenho alergia. Depois, fugi de casa para procurar ajuda e ele foi atrás de mim com uma arma. Cheguei a retornar, mas ele voltou a me bater. Denunciei, estava toda roxa, e ele correu para o cartório e entrou com o divórcio. Isso foi em agosto deste ano. A decisão da Justiça saiu agora.

Foi muito difícil conviver nestes 20 anos com membros do Hamas em casa. Vivi de tudo um pouco. Ou melhor dizendo: vivi de tudo muito. Tentativa de estupro, assassinato, assédio sexual e verbal. Ameaças de morte se tornaram uma coisa normal. No começo eu achava que fosse porque não sou árabe, só que depois fui entender que eu não era a única.

Nesse tempo, descobri muitos absurdos feitos por famílias do Hamas. São histórias terríveis, e o pior é que são reais. Ninguém consegue fazer nada a não ser continuar calado. Todo o mundo tem medo. Quem abre a boca morre. O Hamas acusa de serem espiões de Israel e mata. Simples. Eles usam a religião como desculpa. Não é uma luta religiosa, pelo contrário. É mundana, suja, porca. Enquanto isso, o povo morre de fome.

As pessoas odeiam o Hamas mais do que odeiam Israel. Por isso achamos um absurdo o que Israel está fazendo com a gente. O Hamas não pediu nossa autorização para fazer a merda que fez. Por que é que nós temos que pagar o preço por um crime que não cometemos?

A vida durante esta guerra é um inferno total. A previsão é que cada dia piore mais. Estão nos matando aos poucos. O medo é constante. A fome, a sede, as doenças, a falta de medicamentos e o genocídio da população.

Meus filhos choram todos os dias e imploram para sair. Sonham em ir embora e ficar longe do pai. Só que a embaixada não ajuda, porque o pai não dá a autorização. Enquanto isso, bate, grita e espanca sem piedade.

Estou há cinco anos tentando sair de Gaza, pedindo ajuda da representação diplomática brasileira em Ramallah e da embaixada em Tel Aviv. Mas eles dizem que, pela lei do Hamas, não conseguem retirar as crianças sem a autorização do pai. Expliquei minha situação, mandei fotos das crianças espancadas, vídeos do Said as ameaçando. Descrevi tudo em detalhes. Citei as guerras, o fato de que vivemos sempre com medo e que os meus filhos sonham em ir para o Brasil para ter uma vida normal como o resto das crianças do mundo. Mas tudo isso foi em vão.

Preciso de ajuda para tirar meus filhos de Gaza. Não entendo como um país como o Brasil segue as regras de um governo podre e considerado terrorista. Mesmo se o Said morrer, eu continuo sem conseguir tirar meus filhos de Gaza. Precisaria da autorização dos tios.

Espero que um dia você converse com os meus filhos e eles te contem o que querem. Que lhe digam que todo dia eles telefonam para a avó, para a tia deles e para a minha tia, chorando e implorando para sair de Gaza.

Quero que um dia a gente possa ir de Gaza para a Cisjordânia e da Cisjordânia para Gaza outra vez, assim como a gente podia antes de essa fraude de governo tomar o poder. Ou espero que a gente possa sair pela fronteira com o Egito e voltar em segurança. Quero ter o direito de ir e vir sempre que quiser para visitar amigos e familiares. É um direito que todo cidadão do mundo tem, mas a gente aqui na Faixa de Gaza, não.

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