Guerra da Ucrânia faz 2 anos com Putin de volta à ofensiva

'Tudo depende de Trump não ganhar', diz soldado ucraniano; apesar de fracasso de Kiev, conflito deve se manter estável

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Soldado ucraniano conhecido pelo codinome Diak, 43, em posição perto de Bakhmut

Soldado ucraniano conhecido pelo codinome Diak, 43, em posição perto de Bakhmut Inna Varenitsia - 10.jan.2024/Reuters

São Paulo

A Guerra da Ucrânia chega neste sábado (24) ao seu segundo aniversário desafiando as predições de lado a lado e mantém como certeza apenas sua continuidade em um mundo completamente diferente daquele em que todos viviam na véspera da invasão ordenada por Vladimir Putin.

No movimento pendular da guerra mais destrutiva na Europa desde 1945, o presidente russo voltou a estar no lado da iniciativa, e o ucraniano Volodimir Zelenski, no do pessimismo com o futuro. Nenhuma das situações é inédita, nem tampouco definitiva.

Moradores caminham perto de mural de soldado no bairro de Podil, na capital ucraniana, Kiev
Moradores caminham perto de mural de soldado no bairro de Podil, na capital ucraniana, Kiev - Roman Pilipei/AFP

Na semana passada, Moscou tomou a simbólica Avdiivka, talvez a custo de 16 mil vidas de seus soldados ao longo de quatro meses. A cidadezinha é vista como um eixo para a conquista do que falta da região de Donetsk (leste), e, com efeito, Kiev tenta desencorajar tal leitura.

O problema para Zelenski é que sua estratégia de comunicação anda falha. O energizador de plateias virtuais mundo afora que auferiu R$ 1,35 bilhão em ajuda militar e financeira até aqui, segundo o Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha), vive uma crise de confiança, decorrente do fracasso de sua contraofensiva do ano passado.

A isso somou-se a eleição americana, que colocou em pausa por cortesia dos aliados de Donald Trump o pacote proposto por Joe Biden —seu rival presumido em novembro— de novos R$ 300 bilhões em apoio bélico a Kiev.

Internamente, Zelenski viu sua sapiência questionada pelo popular chefe das Forças Armadas e achou por bem livrar-se dele neste mês.

É um conjunto delicado de fatores. Após falhar em tomar Kiev nas 72 horas previstas pelos americanos, Putin reformulou diversas vezes suas táticas. O russo diz ter 600 mil homens em operação na Ucrânia, ante os 200 mil da invasão.

Zelenski dispõe hoje de 800 mil militares em ação, mas Putin tem quatro vezes mais população para trabalhar do que o ucraniano. Sem munição básica, Kiev se vê em apuros, e a Europa tenta mitigar com anúncios de ajuda bilaterais —a nanica Dinamarca tornou-se a quinta maior doadora dos ucranianos.

"A União Europeia está consciente do que significaria o Exército russo assumir posições ao longo de uma parte muito maior da sua fronteira. Continuaremos a apoiar a Ucrânia com tudo o que for necessário, porque a própria segurança da Europa está em jogo", disse à Folha Josep Borrell, o chefe da diplomacia do bloco, antes da reunião de chanceleres do G20.

'Tudo depende de Trump não ganhar', diz soldado ucraniano

Recuperando-se de uma traumática passagem pela região de Donetsk, o soldado ucraniano Valeri, que pede para se identificar pelo nome de guerra Kong, relatou à reportagem as dúvidas suas e de seus colegas com tal apoio.

"Nosso batalhão perdeu 70% do pessoal, talvez 30% mortos, perto de Bakhmut. Os orcs [como os russos são chamados, em referências aos monstrengos vilões da saga "O Senhor dos Anéis"] têm muito mais munição que nós e aprenderam os truques no uso de drones", disse Kong.

Para ele, a sorte da Ucrânia "depende de os europeus trabalharem mais e de Trump não ganhar a eleição". Kong parece correto: a eleição americana se mostra um marco temporal vital para o conflito, dada a disposição apresentada pelo republicano de abandonar Kiev.

Putin joga com isso e propagandeia sua posição, de olho também em galvanizar o eleitorado a ir às urnas para referendar sua certa reeleição em março. O dissenso está acuado no país, como a morte do opositor Alexei Navalni na cadeia ilustrou.

Ele também vê o impacto da guerra no ânimo ocidental: pesquisa com 17 mil moradores de 12 países do bloco, feita pelo Conselho Europeu de Relações Exteriores em janeiro, mostrou que só 10% dos ouvidos dizem acreditar numa vitória ucraniana —metade acredita no triunfo russo, enquanto 37% creem numa negociação, algo rejeitado por Kiev.

O fator Gaza

Um fator exógeno ajudou Putin em 2023: a guerra entre Israel e o grupo terrorista palestino Hamas, que é apoiado por Moscou. O foco do Ocidente a partir dos atentados do 7 de Outubro que dispararam o conflito foi desviado da Ucrânia, como o próprio Zelenski já disse.

Se o tempo favorece o Kremlin, que mantém ativa também sua campanha aérea, por ora isso não significa perspectiva de vitória rápida, salvo reviravoltas.

"Ambos os lados foram incapazes de traduzir sucessos táticos em operacionais. Agora, a Rússia mantém a iniciativa quase ao longo de toda a linha de frente, e a Ucrânia mudou para a defesa estratégica, que ainda é bastante estável", diz Ruslan Pukhov, diretor do Centro de Estudos de Estratégias e Tecnologias, de Moscou.

Para o analista russo, isso condena 2024 ao atrito crescente que se vê. O cenário não implica falta de ação: Putin pode acabar rompendo linhas ucranianas, e a Ucrânia seguirá com ações mais vistosas, como o afundamento de navios da Frota do Mar Negro.

De todo modo, a melhor posição russa afastou um pouco até as usuais ameaças nucleares ao Ocidente, salvo um passeio de Putin num bombardeiro capaz de lançar essas armas aqui, uma declaração perdida ali.

Sanções não têm eficácia prevista

O Ocidente jogou suas fichas na asfixia da Rússia por meio de draconianas sanções, além do confisco de R$ 1,5 trilhão em reservas do Kremlin no exterior. Antes da guerra, havia desde a anexação da Crimeia, em 2014, 2.695 sanções contadas pela consultoria Castellum.AI. Agora, são 19.282. A aposta era a descontinuação da máquina de guerra russa, a revolta popular e o descontentamento da elite com Putin.

Se causa grande impacto, a jogada fracassou até aqui como estratégia, e novas medidas foram divulgadas nesta sexta (23). A Rússia cresceu 3,6% em 2023, tem inflação alta, mas tolerável, e o presidente marca 85% de aprovação —ainda que corra risco de prisão nos 123 países signatários do estatuto do Tribunal Penal Internacional, que emitiu tal ordem devido à deportação de crianças.

O único desafio interno real que enfrentou, o motim mercenário contra a cúpula militar em junho passado, tinha a ver com disputas de poder e foi contornado.

Por óbvio, o cenário não é róseo para ninguém. Mas assim como a queda rápida de Kiev não veio e a contraofensiva fracassou, todos seguem no jogo. Ao fim, para o alívio do grande sujeito oculto da guerra, a China, aliada discreta de Putin e rival dos EUA na Guerra Fria 2.0. Outro atores buscam espaço na neutralidade, como Brasil e Índia.

Restam os mortos e feridos, número cuja impossibilidade de aferição mostra o poder do controle narrativo em um mundo de informação instantânea. Moscou diz que causou 385 mil baixas a Kiev, e a Ucrânia relata 315 mil russas. A conta ocidental usual fica em 500 mil ao todo, algo mais para a Rússia.

Entre civis, a ONU relata com mais precisão 6,5 milhões de ucranianos refugiados fora do país e outros 3,7 milhões deslocados internamente. E não propagandeia os 10 mil mortos que conta, não menos porque sabe que é um número subestimado.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.