Sombra da Terceira Guerra Mundial cobre conflito na Ucrânia

Fracasso inicial da invasão levou Putin a misturar táticas modernas às do conflito de 1945

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São Paulo

Chamado a uma sessão secreta do Congresso dos EUA para avaliar a possibilidade de uma invasão russa da Ucrânia, o principal general americano previu no início de fevereiro de 2022 que Kiev cairia em 72 horas.

As imagens após o dia 24 daquele mês sugeriam que Mark Milley estava certo: helicópteros russos cruzavam a fronteira da Belarus e despachavam comandos para Hostomel, aeroporto a noroeste da capital, forças avançavam por três frentes com colunas blindadas, tudo coberto por um ataque de mísseis semelhante ao que o mundo se acostumou a ver sendo feito pelos EUA desde a Guerra do Golfo.

Adolescente passa com um hoverboard por um tanque russo destruído em Tchernihiv, na Ucrânia
Adolescente passa com um hoverboard por um tanque russo destruído em Tchernihiv, na Ucrânia - Serguei Tchuzavkov - 7.set.22/AFP

Um ano depois, o cenário de uma dura guerra de atrito é espelho do preço que a soberba cobra. "Nenhum de nós achou que não venceríamos rapidamente", afirma Ivan Barabanov, analista militar em Moscou.

Os motivos do fiasco inicial da operação russa já foram necropsiados: anemia de tropas, erros táticos no emprego unitário de forças blindadas sem apoio de infantaria, timidez na cobertura aérea e logística pobre: metade dos tanques perdidos no começo da guerra foi abandonada por falta de combustível.

A isso se somou, como mostrou estudo do britânico Royal United Services Institute, a eficácia de batalhões de artilharia defendendo Kiev e o impacto de mísseis portáteis antitanque americanos Javelin nas desprotegidas colunas de blindados de Moscou. A resistência dos ucranianos dobrou inclusive os EUA, que chegaram a oferecer a Volodimir Zelenski tocar seu governo no exílio. A oportunidade estratégica para Washington estava dada: lutar uma guerra por procuração que sangrasse os russos.

Por sangrar os russos leia-se sangrar os chineses, os aliados de Moscou que são os reais rivais estratégicos dos EUA na Guerra Fria 2.0. O problema era fazer isso sem disparar uma Terceira Guerra Mundial, dado que Vladimir Putin opera um arsenal nuclear que supera o de Joe Biden.

Fracassados de saída, os russos se reagruparam, dando tempo para que o Ocidente começasse a testar as linhas vermelhas do Kremlin cada vez que um novo sistema de armas moderno era oferecido a Kiev.

Houve adaptações tecnológicas, como a entrada em operação de armas eletrônicas para capturar drones ou desabilitá-los. A eficácia dos modelos de ataque turcos Bayraktar-TB2 caiu: hoje os robôs voadores são essenciais no campo de batalha, mas muito mais para papel de reconhecimento e aquisição de alvos.

Outras soluções foram mais simples: com a disseminação de drones domésticos chineses com pequenas munições pelos dois lados, tanques russos quase sempre estão equipados com gaiolas de proteção no teto —úteis também contra Javelins, que têm trajetória descendente quando atingem seus alvos.

Do lado ucraniano, apontou o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), a transformação está acelerada de uma força baseada em material soviético antigo para outra com elementos padrão Otan, a aliança militar ocidental cuja proposta de adesão a Kiev foi um dos "casus belli" de Putin.

Obuseiros M777 e, principalmente, lançadores de foguete de artilharia de alta precisão Himars, ambos americanos, tornaram-se símbolo das contraofensivas bem-sucedidas de Zelenski no fim do ano passado.

O apoio se dá em números. Dos US$ 153 bilhões (R$ 785 bilhões) enviados em ajuda para Kiev até 15 de janeiro, nas contas do Instituto para Economia Mundial de Kiel, da Alemanha, 40% diziam respeito a armas e logística de defesa. Dessa fatia, 75% do apoio veio dos EUA. A escalada foi lenta, justamente pelo temor de uma guerra ampla. Os Himars só vieram no segundo semestre. Tanques de guerra, incorretamente estigmatizados devido ao emprego tático errado dos russos na guerra, seguiram como tabu até este ano.

Mesmo a promessa de até 140 unidades de modelos Leopard-2 alemães, de diversos países, americanos M1 Abrams e britânicos Challenger-2 virou uma novela. É um problema: de uma frota pré-guerra de 987 tanques soviéticos, engordada por 230 poloneses doados, Kiev perdeu ao menos 470, de acordo com o monitor de dados abertos Oryx, conservador por registrar apenas imagens públicas georreferenciadas.

Mas o tabu foi rompido, assim como o fornecimento de mísseis mais baratos com alcance maior por parte dos EUA. Para Zelenski, a próxima fronteira são os caças ocidentais, o que Biden por ora se nega, alegando o risco de ataques em território russo. Do lado de Putin, às inovações tecnológicas foi acrescida uma volta ao passado. "A tentativa de fazer uma guerra rápida e moderna não deu certo, com batalhões táticos reduzidos. Agora, toda ação é maciça, com muita artilharia e pessoal", afirma Barabanov.

Para Ben Barry, especialista em forças terrestres do IISS, a Rússia voltou aos tempos das grandes batalhas da Segunda Guerra, como a maior entre blindados da história, contra os nazistas em Kursk. O preço é claro: 1.762 tanques perdidos, segundo o Oryx, equivalente a 52% da frota ativa pré-guerra.

Mas, como em 1944, Moscou passou a confiar em números brutos: tinha cerca de 10 mil tanques antigos estocados e convocou 320 mil reservistas. Ninguém sabe quantas pessoas morreram e ficaram feridas na guerra, mas o Ocidente considera baixas na casa de 180 mil para a Rússia e 100 mil para a Ucrânia.

Segundo o americano Rob Lee, uma das estrelas entre observadores da guerra que emergiram no Twitter, mesmo mal preparados eles dão musculatura para Putin tocar suas ações atuais no leste da Ucrânia.

Há indícios de que a Força Aérea está mais ativa, após retrair-se ante perdas proporcionalmente consideráveis de seus aparelhos mais modernos. Um ícone da modernização russa, o avião de ataque e bombardeio tático Su-34, viu 19 de suas 124 unidades pré-guerra perdidas. A Marinha só surgiu para dar más notícias ao chefe do Kremlin, com a perda do cruzador pesado Moskva no mar Negro.

Um problema para ambos os lados é munição. O estoque de mísseis de precisão, que para funcionar demandam chips ora vetados à Rússia, está em baixa: por isso o uso de foguetes antiaéreos S-300 para atingir alvos em solo. Já a UE vê a guerra "perdida" sem aumento de produção de obuses de 155 mm.

Por fim, a carta nuclear, brandida por Putin do dia da invasão, quando prometeu punir interferências externas na sua guerra, até seu discurso sobre o conflito na última terça (21), quando suspendeu a participação russa no último tratado de controle de armas atômicas em vigor com os EUA.

Menos do que o temor de que o Kremlin empregue contra forças ucranianas uma arma nuclear tática, de uso limitado, a questão que fica é: o presidente russo subiria esse degrau em caso de colapso de suas forças, recorrendo à doutrina que prevê o recurso em caso de risco existencial ao Estado?

Por ora, não há sinal de tal cenário, assim como uma ofensiva decisiva contra a Ucrânia, com um movimento em pinça pelo sul e pelo norte, isolando as forças de Zelenski, parece improvável. Ambas as situações ensejariam escalada, e é isso que perturba os planejadores ocidentais.

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