Oposição acusa presidente de Senegal de tentar dar um golpe

País, que Rússia quer tirar da esfera de influência da França, tem eleições adiadas

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São Paulo

Até aqui uma ilha de relativa estabilidade na conturbada região da África Ocidental, o Senegal entrou em uma grave crise política que ameaça colocar em rota de colisão novamente a França, ex-potência colonial, e a Rússia de Vladimir Putin.

O presidente do país, Macky Sall, propôs no sábado (3) o adiamento das eleições gerais que aconteceriam no próximo dia 25 para agosto. Após muita discussão e protestos reprimidos pela polícia, o Congresso aprovou na segunda (5) a nova data do pleito para ainda depois no calendário: 15 de dezembro.

Policiais de choque observam barricada em chamas em Dakar no domingo (4), após protesto contra o adiamento das eleições no país
Policiais de choque observam barricada em chamas em Dakar no domingo (4), após protesto contra o adiamento das eleições no país - Seyllou - 4.fev.2024/AFP

Sall, o primeiro senegalês nascido no país a ser presidente após a independência da França em 1960, chegou ao poder em 2012 e foi reeleito sete anos depois. Em julho passado, após a prisão de seu principal rival, Ousame Sonko, ele buscou esvaziar boatos de golpe dizendo que não iria buscar mudar a lei para poder concorrer uma terceira vez.

O líder acusa o órgão que elaborou a lista com 20 presidenciáveis de corrupção. Alguns candidatos, mesmo de oposição, foram barrados. Isso levou o oposicionista Partido Democrático Senegalês a se unir ao governo e passar o adiamento, com o apoio de 105 dos 165 deputados.

Outros rivais de Sall o acusaram de querer dar um golpe de Estado dentro do escopo das regras vigentes. "É um golpe institucional", afirmou o candidato Khalifa Sall, da coalizão F24. Cinco postulantes prometeram recursos à Corte Constitucional para derrubar o adiamento, e o bloco político-econômico da África Ocidental, o Ecowas, pediu a volta do calendário regular.

O desfecho da crise ainda é insondável, mas ela leva mais um país da região para o rumo da instabilidade política. Desde 2020, foram oito golpes de Estado no centro-sul do continente, concentrados na faixa que divide o deserto do Saara do resto da África.

Só em 2023, foram dois, no Níger e no Gabão. Cada caso, claro, tem suas particularidades, mas há um substrato comum de esgotamento no relacionamento dos países com sua antiga colonizadora, a França.

Ele se sustentou ao longo das décadas pós-independências, mas insurreições jihadistas, guerras civis, desigualdade e miséria, tudo isso dentro do contexto da crise climática que tem afetado duramente a região, acabaram alimentando o discurso político de revolta contra os franceses.

Paris investiu pesado, ao longo dos anos, na presença militar ativa para tentar coibir o terrorismo islâmico no Sahel, de olho em evitar que ele transbordasse para a Europa junto com os fluxo migratório ilegal.

O caso senegalês é simbólico. "O país tradicionalmente foi estável, e teve um papel importante no desenvolvimento da África Ocidental graças a seus portos e ao comércio de energia coma Europa. Suas Forças Armadas sempre ajudaram as missões europeias contra o terror", escreveu o analista Ronan Wordsworth, da consultoria americana Geopolitical Futures.

A França mantém 1 de suas 5 bases na região justamente no Senegal, onde 400 soldados estão estacionados desde 2011. Mas a nova realidade já se impõe: a junta militar que governa o Níger ordenou a saída dos 1.500 militares franceses que ocupavam três instalações usadas para combater grupos extremistas.

De olho nesse vácuo está a Rússia, que vem lentamente buscando ocupar espaços deixados por Paris. O arcabouço do projeto africano de Putin havia sido estabelecido pelo grupo mercenário Wagner, que atuou em pelo menos sete países da região.

Com a queda em desgraça da entidade após a tentativa de golpe contra a cúpula militar russa em 2023 e o assassinato de seu fundador dois meses depois, nomes ligados às Forças Armadas assumiram o controle das forças e negócios do Wagner no continente —há 2.000 homens no Mali, por exemplo, pagos pela junta militar que assumiu em 2020.

Putin criou uma cúpula com países africanos que, em 2019, se mostrou promissora. A sua segunda edição, no ano passado, acabou esvaziada pela Guerra da Ucrânia, mas nem tanto: o presidente Sall, por exemplo, esteve entre os convidados mais cortejados.

Politicamente, o pé na África é uma forma de amplificar o discurso do Kremlin de que o isolamento proposto pelo Ocidente é inócuo, embora economicamente ainda falte muito. Segundo dados do Congresso americano, o comércio bilateral de Moscou com nações africanas foi de US$ 18 bilhões em 2023, ante US$ 64 bilhões dos EUA e astronômicos US$ 254 bilhões com a China.

Moscou apoiou o que chamou de autodeterminação dos povos ao analisar os golpes recentes. No Níger, manifestantes gritavam "vida longa a Putin" em manifestações pró-golpe, segundo registro de mídias sociais repetido por redes ocidentais.

No caso senegalês, analistas russos afirmam que o país seria um parceiro ideal para o estabelecimento de uma base naval do Kremlin no Atlântico, algo que outros aliados até aqui na região não têm como oferecer.

Por ora, a situação é fluida. "Muito agora depende do que a Corte Constitucional do Senegal fará quando analisar os recursos dos candidatos de oposição questionando a decisão de Sall. Se ela considerar legal, podemos esperar um período de protestos nas ruas e mais gestos de abertura para a Rússia", diz Wordsworth.

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