Descrição de chapéu África do Sul

Campanha contra imigrantes ganha força antes de eleição na África do Sul

Partido que ocupa poder no país desde fim do apartheid perde popularidade enquanto sentimento anti-imigração cresce

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Tim Cocks
Johanesburgo | Reuters

Munera Mokgoko tinha apenas três anos quando o regime do apartheid caiu. Ela mal consegue se lembrar —muito menos compreender— da corrente de esperança trazida pela libertação do povo negro há três décadas, moldada pela visão de Nelson Mandela sobre igualdade social e solidariedade.

"A África do Sul não tem ‘ubuntu’ algum", disse a mulher de 33 anos, usando uma palavra do idioma zulu que significa humanidade, antes de uma eleição em que o partido no poder desde o fim do apartheid, o Congresso Nacional Africano (CNA), está prometendo endurecer sua postura contra imigrantes em situação irregular vindos de outros países do continente.

"É como se não soubéssemos receber as pessoas."

Trabalhadores andam em frente a planta de energia na África do Sul
Trabalhadores passam em planta de energia termoelétrica desativada no vilarejo Komati, na África do Sul - Siphiwe Sibeko - 9.mai.24/Reuters

O marido de Mokgoko, um tanzaniano, é um dos muitos imigrantes que chegaram na África do Sul desde o fim do domínio da minoria branca e conheceram o lado frio da "nação arco-íris", nome usado por Mandela e por outros na década de 1990 para descrever as pretensões do país em se tornar um centro da harmonia entre culturas.

O ressentimento público contra a imigração se tornou um assunto em voga com a aproximação das votações, que acontecem em 29 de maio. É a primeira eleição nacional em que a maior parte da população da África do Sul –país com a média de idade em 28 anos– não tem memórias de décadas de apartheid, da luta por liberdade ou da ascensão do movimento de libertação do CNA ao poder em 1994.

Idi Rajebo, marido de Mokgoko, de 34 anos, e milhares de outros esperançosos que fugiram da miséria em áreas rurais de países muito mais pobres, como a Tanzânia e o Maláui, aventuraram-se em ônibus deteriorados, caminharam em matas e subornaram guardas nas fronteiras para alcançar Joanesburgo, a "cidade de ouro" na África do Sul.

Ele e dezenas de outros acabaram abarrotados em um prédio abandonado, que estava sendo tomado –ou sequestrado– por criminosos, em que as privadas estavam entupidas e usuários de drogas cruzavam as pernas nas escadarias.

"Não era bom", disse Isaac Simon, 39, um amigo tanzaniano de Rajebo que liderava uma cozinha no piso térreo. "Todos tínhamos a mesma ideia: juntar algum dinheiro e sair dali."

Dezenas não tiveram essa chance. Há nove meses, o conjunto de apartamentos Usindiso foi tomado por chamas, tragédia que matou 77 pessoas –em sua maioria, imigrantes– e deixou centenas desabrigadas.

A agência de notícias Reuters é o primeiro veículo a juntar histórias de muitos dos sobreviventes, antes e depois da tragédia do Usindiso. Este texto é baseado em entrevistas com cerca de 50 pessoas, incluindo 19 vítimas migrantes, autoridades do governo e advogados representando sobreviventes, em um inquérito público sobre a causa do incêndio, além de centenas de páginas de documentos submetidos como provas, muitos dos quais não estão disponíveis ao público.

Os relatos lançam luz sobre as condições precárias que muitos africanos suportavam ao chegar no país em busca de uma vida melhor na economia mais avançada do continente, e sobre a hostilidade que dizem ter encontrado das autoridades sul-africanas e de grupos que culpam os estrangeiros por supostamente tirar empregos e serviços dos locais.

A investigação pública concluiu neste mês que o incêndio foi causado por um homem sul-africano que estava sob efeito de metanfetamina e estrangulou outra pessoa no local até a morte. Depois, ateou fogo ao corpo com gasolina para ocultar as provas do assassinato.

A investigação também culpou a negligência das autoridades por permitir que o prédio se tornasse uma zona perigosa, repleta de armas, assassinatos, drogas e lixo combustível, descobertas que levaram o primeiro-ministro da província (cargo similar ao de governador no Brasil) a se comprometer a implementar rapidamente as recomendações do relatório.

'Lutamos por uma África livre'

Para aqueles que sobreviveram ao incêndio, o sofrimento continua. Sete dos 19 migrantes entrevistados estão dormindo em calçadas ou em tendas improvisadas. Os outros disseram que estavam vivendo em acomodações ainda mais lotadas e sujas do que o prédio destruído do qual escaparam, enquanto quatro foram deportados por não terem documentos de imigração válidos.

No total, 25 sobreviventes do incêndio foram deportados, de acordo com advogados que os representam na investigação pública sobre o incêndio.

A eleição deste mês pode marcar o fim de uma era para a África do Sul pós-apartheid, com o dominante CNA esperando perder sua maioria parlamentar pela primeira vez, abandonado por eleitores indignados com uma série de problemas nacionais, incluindo a escassez de moradias decentes, cortes de energia frequentes, escassez de água, escolas precárias, desemprego generalizado e alta criminalidade.

A maioria dos principais partidos apresentou planos para reprimir com mais rigor os imigrantes ilegais enquanto disputam votos em uma corrida acirrada. No mês passado, o governo publicou propostas em seu Diário Oficial para reduzir seus compromissos com a convenção das Nações Unidas sobre refugiados e tratados relacionados para "dissuadir os imigrantes que vêm para a África do Sul procurando melhores condições econômicas se disfarçando de solicitantes de asilo", uma medida que almeja liberar a pronta rejeição pedidos de asilo que considerasse falsos.

O texto provocou uma reação das organizações locais de direitos humanos e três agências da ONU –o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a Organização Internacional para Migrações (OIM) e o Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef)– disseram que a retirada dos compromissos estabeleceria um precedente negativo e poderia fazer com que crianças nascidas na África do Sul se tornassem apátridas.

As propostas também contrariam a mensagem transmitida por Mandela, ex-líder do CNA, que declarou que os africanos eram "um povo com um destino comum" após se tornar o primeiro presidente democraticamente eleito do país.

"Quando a história de nossa luta for escrita, ela contará uma gloriosa história de solidariedade africana", disse Mandela a outros líderes em junho de 1994. "A África derramou seu sangue para que todos os seus filhos pudessem ser livres. Ela deu de sua riqueza e recursos limitados para que toda a África fosse libertada." O CNA aderiu aos tratados de refugiados incondicionalmente em 1995 e 1996.

Em um discurso de 1997 para marcar o Dia do Refugiado Africano, Mandela disse que a resposta para gerenciar grandes fluxos de refugiados, muitos impulsionados por conflitos, era enfatizar os direitos políticos e civis das pessoas para "todos nós no continente africano nos unirmos".

Trabalhadores andam em frente a planta de energia na África do Sul
Local no vilarejo de Komati, na África do Sul - Siphiwe Sibeko - 9.mai.24/Reuters

O Ministro de Assuntos Domésticos, Aaron Motsoaledi, que apresentou as propostas para diminuir os compromissos sul-africanos com a convenção da ONU, disse à Reuters que os imigrantes como um todo estavam se tornando um fardo pesado para os recursos da África do Sul, citando um hospital, na cidade nordeste de Musina, onde ele disse que os zimbabuanos representavam 70% dos pacientes da maternidade.

A Reuters não pôde verificar esses números de forma independente.

Motsoaledi também disse que os imigrantes irregulares estavam permitindo que os empregadores reduzissem o salário mínimo e rejeitou qualquer sugestão de xenofobia. "Cada país tem o direito de proteger seus interesses", disse. "O pan-africanismo não significa entrar ilegalmente nos países uns dos outros."

A posição do governo é rejeitada por Andy Chinnah, um ativista de direitos humanos que passou os últimos nove meses ajudando as vítimas do incêndio com refeições e na organização de suas representações legais para o inquérito que examinou as causas e quem deveria ser responsabilizado pela tragédia.

Chinnah disse que o tratamento dado aos imigrantes africanos o lembra do sistema de apartheid, mas agora são pessoas negras de outros países que são estrangeiras. Movimentos políticos para restringir os direitos dos migrantes são uma traição ao legado de Mandela, disse ele.

"Ele queria uma África unida. Todos os outros presidentes dos outros países africanos o apoiaram e ao movimento de libertação para obter a liberdade que desfrutamos hoje", disse Chinnah. "Não lutamos apenas pela liberdade de nós na África do Sul. Lutamos por uma África livre. Lutamos contra o colonialismo."

'Operação expulsar'

O número de imigrantes vivendo legalmente na África do Sul quase triplicou de 835 mil, em 1996, para 2,4 milhões em 2022 –mais de 80% deles da África subsaariana, de acordo com o escritório nacional de estatísticas.

As estatísticas sul-africanas não incluem imigrantes em situação irregular. Ainda segundo dados oficiais, a imigração deporta de 15 mil a 20 mil migrantes indocumentados por ano, e o número está aumentando.

Imigrantes da África subsaariana, onde grande parte da população luta para sobreviver na agricultura com recursos escassos, muitas vezes estão dispostos a correr grandes riscos para chegar à economia mais industrializada da África do Sul. Eles buscam trabalho como cuidadores de crianças, garçons, seguranças, mineiros artesanais e comerciantes, para citar alguns empregos.

Trabalhadores andam em frente a planta de energia na África do Sul
Sul-africanos lavam roupas no rio Qunu, próximo de onde nasceu Nelson Mandela, na África do Sul - Siphiwe Sibeko - 4.mai.24/Reuters

Dos 19 sobreviventes imigrantes entrevistados pela Reuters, nove, incluindo Rajebo, disseram que estavam com vistos válidos, mas perderam os documentos junto com a maioria de seus pertences no incêndio. Os outros dez disseram que não tinham documentos de imigração válidos.

Há uma frustração pública generalizada com os imigrantes irregulares na África do Sul, especialmente entre os jovens, de acordo com uma pesquisa com mil pessoas de 18 a 24 anos publicada neste mês pela Fundação da Família Ichikowitz, um grupo de defesa dos direitos com sede em Joanesburgo.

Aproximadamente 88% dos entrevistados disseram acreditar que os migrantes ilegais estavam tirando empregos e recursos dos sul-africanos, 86% disseram que estavam aumentando a criminalidade, e 85% achavam que deveriam ser removidos à força.

Poucos movimentos canalizam essa raiva de forma mais completa do que a Operação Dudula –que significa "expulsar" em Zulu– um grupo fundado em 2021 com a missão de livrar a África do Sul de imigrantes ilegais, a quem culpam por muitos males sociais e econômicos.

O movimento de rua tem milhares de seguidores em todo o país. Tornou-se conhecido por realizar manifestações contra trabalhadores imigrantes ilegais, fazer ameaças contra os imigrantes e às vezes realizar ataques a negócios de propriedade estrangeira.

A Operação Dudula se registrou como partido político no final do ano passado, mas no mês passado a comissão eleitoral a excluiu das eleições por não cumprir o prazo para a entrega de sua lista de candidatos.

Aproximadamente metade dos sobreviventes imigrantes do incêndio em Joanesburgo em 31 de agosto entrevistados pela Reuters disseram ter sido ameaçados e intimidados por membros da Operação Dudula, tanto antes, quanto depois do desastre.

Dois meses antes do incêndio, membros da Dudula invadiram o prédio, vestidos com seu uniforme de camisetas brancas e calças de combate, exigindo verificação de identificação de estrangeiros, revistando quartos em busca de drogas e agredindo alguns moradores com chicotes, de acordo com quatro testemunhas entrevistadas. Seus relatos são corroborados por cinco declarações juramentadas separadas apresentadas à investigação pública e vistas pela Reuters.

No dia seguinte ao incêndio, enquanto dezenas de sobreviventes atordoados e desabrigados estavam do lado de fora do prédio, cerca de 30 membros da Dudula chegaram armados com chicotes, marcharam e começaram a provocá-los, de acordo com cinco testemunhas e cinco declarações juramentadas.

"Eles estavam gritando, cantando, rindo alegremente", disse Omari Hanya, 44, um sobrevivente tanzaniano que estava lá. "'Esses estrangeiros devem voltar para casa ou morrer', eles estavam dizendo em zulu."

O secretário-geral adjunto da Dudula, Isaac Lesole, rejeitou as alegações de que o grupo assediava ou abusava de imigrantes no prédio. Ele disse que o código de conduta do grupo, que a Reuters teve acesso, permitia que os membros apenas perguntassem se alguém tinha documentos de visto legítimos, não exigindo vê-los. Ele contestou a acusação, dizendo que seu papel sempre foi alertar as autoridades responsáveis.

"No passado, tivemos problemas por agir por conta própria", disse Lesole. Ele reconheceu que membros da Dudula haviam ameaçado imigrantes e atacado empreendimentos comandados por estrangeiros no passado, mas insistiu que o grupo agora opera como denunciantes dentro da lei.

Perguntado sobre como as autoridades veem a Dudula, o Ministro de Assuntos Domésticos, Motsoaledi, disse que a África do Sul não aprova as atividades anti-imigração do grupo. "Não se faz justiça com as próprias mãos", afirmou

O suspeito do incêndio fatal, que está detido e foi acusado de 76 acusações de assassinato e 86 de tentativa de assassinato, ainda não se declarou culpado.

Em março, o advogado do suspeito afirmou publicamente que ele pretendia se declarar inocente. Desde então, o suspeito demitiu seu advogado por não comparecer a uma audiência judicial para representá-lo e um novo advogado não foi nomeado, de acordo com um oficial próximo ao caso que pediu anonimato.

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