RICARDO LAGRECA SIQUEIRA
Tarifa reversa de internet não fere neutralidade de rede
Com a publicação do Decreto nº 8.771/16, muito se tem discutido sobre o conceito de neutralidade de rede, dando margem às mais diversas interpretações.
O Marco Civil da Internet, aprovado pela Lei nº 12.965/14, também trouxe esse assunto, além de outros inúmeros avanços regulatórios.
Para entender as diferenças entre os modelos de negócio na internet e a neutralidade de rede, é importante olhar para a história da internet no Brasil, que teve início na segunda metade da década de 1990.
A rede nasceu baseada em um modelo que utilizava a infraestrutura da telefonia fixa, com acesso tarifado por minutos.
Havia também o pagamento pela prestação de serviços dos primeiros provedores de acesso, como Mandic e UOL, entre outros.
Alguns anos depois, o tráfego de dados passou a ser tratado de forma diferente da telefonia (voz), e a cobrança começou a ser feita de acordo com a velocidade da conexão.
Surgiram então provedores de acesso com modelo de negócio gratuito, como iG e BOL, baseados na receita da interconexão gerada para as detentoras da infraestrutura.
Também os provedores de conteúdo, como sites de notícias, por exemplo, passaram a oferecer modelos gratuitos para os usuários, remunerando-se pela oferta de espaços publicitários.
Os buscadores ofereceram os links patrocinados e a possibilidade de os provedores de aplicação e conteúdo comprarem uma posição mais destacada nas buscas.
À medida que a internet se desenvolvia, surgiam diferentes formas de incentivar o acesso aos serviços dentro do princípio da livre iniciativa e concorrência, o que é absolutamente permitido pela legislação e geralmente benéfico ao consumidor.
No entanto, recentemente, provedores de aplicação desejaram isentar os usuários de seus aplicativos do custo de consumo de banda larga.
A ideia está sendo interpretada por alguns como contrária à neutralidade de rede.
Na proposta, os próprios donos dos aplicativos pagariam à operadora de telecom (provedor de conexão) pela banda larga consumida por seus usuários, o chamado zero rating ou tarifa reversa, como forma de incentivar o uso de seus produtos.
De acordo com o Art. 9º do marco civil, a neutralidade de rede se aplica ao provedor de conexão e somente em relação ao tráfego de pacotes de dados, que não pode ser discriminado por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
É também vedado ao provedor de conexão bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados.
As únicas exceções, legalmente permitidas e aplicadas com o objetivo de manter a estabilidade, segurança, integridade e funcionalidade da internet são a discriminação ou degradação do tráfego dos pacotes de dados por: (a) requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e (b) priorização de serviços de emergência.
Tais requisitos técnicos foram definidos pelo recente decreto 8.771/16 como aqueles decorrentes de: (a) tratamento de questões de segurança de redes, como restrição ao envio de mensagens em massa (spam); e (b) tratamento de situações excepcionais de congestionamento de redes, como rotas alternativas em casos de interrupções da rota principal e em situações de emergência.
Na prática, os exemplos típicos de violação à neutralidade de rede seriam: (a) criação de pacotes de acesso pelo provedor de conexão com preços e condições diferentes, como "internet A" e "internet B", com acesso a determinados provedores de aplicação e/ou conteúdo (redes sociais, aplicativos), estabelecendo bloqueio aos demais - assim, um usuário da internet B ficaria sem acesso aos conteúdos e aplicações do pacote "A"; ou (b) priorização técnica (em pacotes de dados) do acesso a determinados provedores de aplicação e/ou conteúdo, piorando deliberadamente para o usuário a experiência de acesso aos demais provedores.
Em ambos os casos estariam configuradas as restrições do art. 9º do decreto 8.771.
Em outras palavras, a rede deve ser neutra no sentido de permitir o tráfego de dados de forma não discriminatória do ponto de vista técnico.
Isso em nada se relaciona com a forma de cobrança dos diversos serviços de conexão, aplicação e/ou conteúdo, e nem mesmo com o proposto zero rating ou tarifa reversa.
Como resolver esse impasse? A melhor medida, sempre, é focar no consumidor.
RICARDO LAGRECA SIQUEIRA, é diretor jurídico do Mercado Livre no Brasil. É mestre em direito internacional pela Faculdade de Direito da USP
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