Entre números e mentiras
Andre Vicente - 14.mai.2007/Folhapress | ||
Fachada de agência da Previdência Social na zona sul de São Paulo |
Ao contrário do que se pensa, os números mentem. Não só mentem como são bons mentirosos, pois têm a capacidade de convencer. Para o matemático e jornalista americano Charles Seife, autor do livro "Proofiness", quando queremos persuadir alguém de algo estúpido basta colocar números, pois eles desligam nossas faculdades críticas.
Mas nem sempre os números mentem. Podemos confiar neles, quando são verificáveis a partir da realidade fática e amparados em hipóteses transparentes que podem ser falseadas ou confirmadas.
Um exemplo de mentira com números maquiados a que estamos assistindo é a discussão sobre o pagamento de aposentadorias e pensões do servidor público federal.
Tais benefícios estão inseridos no que se denominou Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), do qual a Constituição de 1988 exige equilíbrio atuarial e financeiro.
Uma das premissas no estudo atuarial apresentado pelo governo é a reposição de 100% dos servidores com as mesmas características funcionais, financeiras e pessoais. Sem que se realize na prática essa hipótese, fica impossível considerar a validade de qualquer conclusão daquele estudo. Aqui, cai a maquiagem dos números.
A premissa não se converterá em realidade, pois desde a implantação do Funpresp (fundo de pensão) não há mais a contribuição pela totalidade da remuneração dos servidores. Além disso, é notório que os governos não têm promovido a reposição de aposentados com as mesmas características funcionais.
Desde a criação do Funpresp já se contabilizava a transfusão contributiva, desidratando o RPPS e engordando o fundo. Previa-se que as despesas do RPPS ficariam estabilizadas de início em relação ao PIB, com tendência posterior de queda até desaparecer por volta de 2060.
Não podemos esquecer que o pagamento de benefícios de aposentadoria e pensões do servidor público federal é impactado por erros e omissões governamentais e legislativas do passado.
No início da década de 1990, houve a entrada de mais de 250 mil servidores celetistas no Regime Jurídico Único por causa da vontade do constituinte. Tais servidores puderam se aposentar com integralidade da remuneração sem ter contribuído para tanto.
Outra omissão: até 1993, inexistia a contribuição dos servidores para a aposentadoria, apenas para a pensão por morte. Até 1998, também não se exigia tempo mínimo para se aposentar com proventos integrais. Bastava cumprir o estágio probatório de dois anos e o servidor poderia ter aposentadoria integral, mesmo tendo contribuído 33 anos pelo teto do RGPS (regime geral).
A implantação do Funpresp derrogou ainda a exigência de equilíbrio atuarial e financeiro, pois impediu que houvesse a solidariedade geracional, que exige a entrada de novos servidores de modo que os ativos paguem pelos inativos.
Com amnésia seletiva, os trovadores da reforma agora demonizam o RPPS, numa campanha mentirosa de combate a um inimigo inexistente —os chamados privilégios dos servidores públicos. Comparam situações de contextos diferentes como se merecessem tratamento igual.
As despesas com aposentadorias e pensões do serviço público, tendendo ao desaparecimento em 2060, sofrem o reflexo de opções legislativas e governamentais do passado. Tais despesas não são o câncer do sistema previdenciário, senão o bode expiatório de uma campanha desonesta do governo e do mercado para aprovar uma reforma que deveria ser conduzida de maneira respeitosa e séria, não açodada como vem sendo.
MAURO SILVA é auditor fiscal da Receita Federal, diretor para assuntos técnicos da Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) e doutor em direito pela USP
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