Caos penitenciário, problema que deve ser enfrentado com urgência

Crédito: Claudio Reis/O Popular/Folhapress Polícia controla nova rebelião em presídio de Goiás, um preso fugiu. Motim é o segundo na Colônia Agroindustrial do Regime Semiaberto em quatro dias, em Aparecida de Goiânia. Outra ação ocorreu no dia 1º de janeiro e deixou nove detentos mortos e 14 feridos, em Aparecida de Goiânia. ***PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS***
Polícia controla rebelião em presídio de Aparecida de Goiânia (GO)

Não é segredo para ninguém que o sistema prisional brasileiro é desumano, degradante, bárbaro e inóspito. Esse caos penitenciário foi oficialmente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF n. 347), que o considerou um verdadeiro estado de coisas inconstitucional.

Esse sistema medieval de segregação humana arrasa brutalmente os direitos fundamentais mais comezinhos de quem é nele inserido e não se preocupa minimamente com a (re)inserção social de quem dele sai. Assim, devo confessar que a mim nem pareceu espantosa a conhecida afirmação do então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no sentido de que preferiria morrer a passar anos num presídio brasileiro.

Os problemas vivenciados nas masmorras tupiniquins são os mais diversos, podendo aqui serem lembrados: superlotação; proliferação de doenças; alimentação precária; falta de higiene; ausência de classificação dos presos por grau de periculosidade; número insuficiente de agentes penitenciários concursados; contratação inconstitucional de vigilantes temporários; domínio dos presídios por organizações criminosas; disputas entre facções pelo poder; torturas; homicídios; decapitações; violência sexual; narcotráfico etc.

Dentro desse quadro kafkiano, o Estado nem consegue mais fingir que cumpre o seu papel. O desleixo estatal de anos fez com que essa bolha de disfunções orgânicas chegasse ao seu diâmetro máximo. Para que ela não exploda de vez e irradie efeitos nefastos sobre toda a nação, mudanças urgentes precisam ser implementadas.

A meu ver, a modificação dessa absurda realidade deve perpassar por dois eixos, a saber: estruturante-preventivo e repressivo.

Quanto ao primeiro aspecto, muito precisa ser feito em termos de investimento. A Lei de Execução Penal é uma verdadeira carta de direitos do sentenciado, mas precisa sair da retórica.

Além de inúmeros outros, os direitos à assistência material consistente no fornecimento de alimentação, vestuário, instalações higiênicas, dormitório salubre com aparelho sanitário e lavatório já estão assegurados em lei federal que, hoje, entretanto, não passam de mera folha de papel, na expressão de Ferdinand Lassalle.

Necessário admitir que o Estado, enquanto ente federado, não possui força econômica suficiente para superar o colapso penitenciário. Assim como ocorre com a proteção do meio ambiente e a tutela do direito à saúde, a política de execução penal também precisa ser compartilhada, sobretudo com a União.

Um primeiro passo nesse sentido foi dado pelo STF ao deferir a medida cautelar da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347 e ordenar a liberação, sem qualquer tipo de limitação, do saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização na finalidade para a qual foi criado. Mas é preciso ir além.

A participação da União não pode se restringir a descontingenciar verbas. O que deve ocorrer é uma força-tarefa, com ampla distribuição e cumprimento de responsabilidades constitucionais.

Com efeito, o policiamento das fronteiras pela Polícia Federal, parafraseando o ministro Gilmar Mendes, não pode ser algo lítero-poético-recreativo. Como até as pedras sabem, drogas e armas, internacionalmente traficadas, abastecem diuturnamente as associações delitivas que dominam os presídios nacionais.

As drogas motivam disputas de território; as armas são usadas na guerra como instrumento de poder. Impedir que ambas —armas e drogas— cheguem até o sistema penitenciário já é, portanto, uma atribuição federal da qual a União necessita dar cabo.

Noutra frente, deve o Estado abandonar a ideia de fixar uma unidade prisional em cada município. O que se verifica, nessas situações, é que esses arremedos de penitenciárias não passam, em verdade, de casebres mal adaptados e pessimamente geridos, nos quais, volta e meia, são inseridos presos que já integram alguma organização criminosa.

Sem o menor controle estatal, esses presos espalham sua doutrina nesses protótipos de presídios e fomentam a cultura do crime. Portanto, parece-me bem mais racional, seguro e econômico que o Estado substitua essas inúmeras "cadeias de pau a pique" por presídios regionais, com estrutura física adequada e gestão profissional.

Nesse rumo, é válido mencionar que o Ministério Público de Goiás firmou com o governo estadual um termo de ajustamento de conduta para a construção de cinco presídios de maior porte, os quais estão prestes a serem entregues. O caminho da regionalização começou a ser trilhado em terras goianas, o que propiciará uma ocupação eficiente das vagas existentes no sistema prisional pelo Poder Executivo, por meio da Diretoria-Geral de Administração Penitenciária de Goiás —que, agora, agirá com a devida autonomia administrativa, orçamentária e financeira, conferidas pela Lei 19.962/2018.

De mais a mais, impende reconhecer abertamente, sem rodeios, que o cárcere não regenera, mas, sim, humilha, perverte, vicia, brutaliza e corrompe. Lógico, pois, que não se consegue obter a ressocialização do indivíduo com a ruptura de seus laços familiares e a experiência de violência que a prisão lhe impõe.

Assim, no aspecto repressivo, como há muito preconizam as Regras de Tóquio, é premente que se invista nas alternativas penais, sobretudo para os crimes destituídos de violência e grave ameaça, a fim de suavizar a imensa população carcerária brasileira, que pode crescer ainda mais, caso sejam efetivados os milhares de mandados de prisão atualmente sem cumprimento.

Destarte, ao lado do acordo de não persecução recentemente previsto na Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, outra solução viável pode estar no alargamento do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo.

Hoje, os casos que envolvam crimes e contravenções cujas penas máximas não ultrapassem dois anos (menor potencial ofensivo) podem ser solucionados com a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a serem transacionadas entre o autor do fato e o Ministério Público. A elevação desse patamar viabilizaria a solução consensuada de inúmeros casos que atualmente abarrotam as varas de execução penal.

Paralelamente, é essencial que se estabeleça uma interlocução entre as inteligências das polícias e do Ministério Público, uma cooperação entre as instituições de persecução penal, para que sejam encarcerados todos aqueles que realmente não apresentam condição mínima para viver em sociedade. Prisão, portanto, somente como ultima ratio, e para quem, por seus atos danosos, represente perigo social (individual ou difuso).

Em desfecho, num de seus imortais escritos, Nelson Mandela (1918-2013) afirmou que "ninguém conhece uma nação até ter estado nas suas prisões". "Uma nação não deve ser julgada pela forma como lida com os seus privilegiados, mas pela maneira como trata os mais humildes."

Precisamos sair desse estado de coisas inconstitucional que tanto nos assola e lutar para que os presos percam a liberdade, mas não a dignidade. Reescrever esse capítulo tenebroso da nossa história é o que nos compete. É necessário agir com urgência ou a bolha pode estourar e aí será tarde demais.

BENEDITO TORRES é procurador-geral de Justiça do Estado de Goiás

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