Descrição de chapéu

Miguel de Almeida: Lula, Dilma e Antonia subtraem o mecanismo

Libelo frouxo contra a série de José Padilha reproduz clichês do vocabulário de autoajuda da esquerda flagrada com a mão no bolso alheio

Cena da série 'O Mecanismo', sobre a operação Lava Jato, em que o ator Selton Mello aparece ao lado de um carro da PF
Cena da série 'O Mecanismo', sobre a operação Lava Jato - Divulgação

Ao fim do libelo frouxo de Antonia Pellegrino publicado neste espaço (1º/4) contra a série "O Mecanismo", de José Padilha, seguido a um bocejo, estranhei não haver a acusação de o diretor estar a serviço da CIA. Com esforço, reli o texto e, pá, lá estava a adiposidade: "...Padilha deixa de presente ao país onde não vive mais...".

Assim como os americanos estão por trás do escândalo da Petrobras, de acordo com a justificativa lulista, a desmoralização de certa esquerda brasileira (de cepa sindicalista e de movimentos guerrilheiros) se dá por forças estrangeiras. Sai a CIA, entra a Netflix.

No texto de Pellegrino se dá a tentativa clássica da "intelligentsia" tupiniquim de classificar tudo o que aperta seus calos de "fascista". Numa análise de marido-e-mulher, acusa-se o roteiro de propor uma saída além-política, pelas próprias mãos, e de acreditar que MP e PF não integram o "mecanismo".

É um tédio.

São clichês do vocabulário de autoajuda da esquerda flagrada com a mão no bolso alheio. 

Assim como as lideranças petistas não fizeram autocrítica pela prática de corrupção, a estreia de "O Mecanismo" revela um despreparo deles em análises estéticas. Ou seria desonestidade? Reclama-se de o roteiro colocar no colo do PT/PMDB o escândalo do Banestado (ele surge sob o PSDB). Mas não anotam que a presença do personagem mais canalha da série é inspirada em Aécio Neves.

Estrebucha-se porque uma frase de Romero Jucá é posta na boca de Higino, inspirado em Lula. Ora, os dois eram correligionários: tudo o que é seu é meu, meu bem.
De outro lado se esquece propositalmente que se trata de uma série de ficção; não é um documentário. Na ficção, personagens, frases e acontecimentos podem ser tratados ... como ficção, Antonia!

Recursos como fusão, elipses e omissões são permitidos. E até acréscimos. Incomoda-me o personagem "O Mago", inspirado em Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), de quem eu gostava bastante por sua delicadeza, ser retratado como um decrépito desalinhado. Ora, mas é uma vingança merecida: no governo, o advogado colocou sua inteligência a serviço do mal. É dele a dica para os tais "recursos não contabilizados". Sabe, em nome da Causa, tudo vale?

O problema de Antonia e de seus companheiros é recorrer a artifícios desonestos para esconder a receita do bolo. De onde se tirou que "O Mecanismo" sugere como alternativa à democracia o apoio à ditadura ou a Bolsonaro? Há, sim, uma desilusão niilista com a contaminação da sociedade, vinda de priscas eras portuguesas, com a complacência brasileira diante da corrupção --portanto, desalento com a sua prática recorrente.

Niilista porque parece ser atávica: basta ler "História da Riqueza no Brasil", de Jorge Caldeira, para se flagrar os diferentes matizes do nosso jeitinho verde-amarelo de pular a cerca. Estava nas práticas tupinambás de poder: é dando que se recebe. Antonia, por que Arariboia mudou de lado? Por dinheiro e poder. E por que o PT montou uma chapa com o PMDB? Se adivinhar, ganha um jantar com Nicolás Maduro no Celeiro da Dias Ferreira.

Mistificações como a de Antonia Pellegrino é que podem nos levar ao fundo do poço com a eleição de Bolsonaro. Sua análise, e de seus companheiros de viagem, se recusa a admitir o desencanto da população provocado pelo escancaramento do assalto ao erário. Faz parte do show: a esquerda refugou em reconhecer os crimes de Stalin. Putin agradece.

Miguel de Almeida

Escritor e diretor dos documentários "Não Estávamos Ali para Fazer Amigos" e "Tunga, o Esquecimento das Paixões"

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