Os 130 anos da abolição da escravatura dos negros, confrontados com nossos valores republicanos do século das luzes, evidenciam uma profunda e indefensável contradição: para os negros, a razão iluminada pós-abolição transformou-se num século de escravidão.
O vazio e a crueza da abolição grafada em dois artigos de lei foram a gênese, mas a ausência e a neutralidade intencionada da República foram a mãe dessa abjeta situação.
O mecanismo da engrenagem foi a parcialidade do Estado democrático de Direito. Apropriado pelas elites hegemônicas, além de proteger seus interesses e privilégios políticos e econômicos, construiu e institucionalizou uma narrativa emulando o racismo e a discriminação racial como desqualificador da diferença e justificador da oposição de superiores e inferiores, naturalizando, por conseguinte, um estado de apartheid social informal.
Essa verdadeira máquina de desalmificação e desumanização do negro questionou até mesmo sua viabilidade e oportunidade de existência como indivíduo e cidadão e tentou, de todas as formas, eliminá-lo espiritual e mentalmente, mediante a demonização e aniquilamento das suas crenças, sua cultura, sua identidade, sua religião, sua estética, seu corpo, cabelo e, precipuamente, a cor da sua pele.
Esse muro de interdição tornou os negros escravos novamente, agora como cidadãos de segunda classe, separados e desiguais. Sem repulsa ou contestação, foi um século de negação.
Cento e trinta anos antes e depois, são os negros os sem moradia, os sem emprego, os sem cultura, os sem voz. São os negros a maioria nas prisões perpétuas dos cárceres e os que são abatidos como moscas pelas balas perdidas e achadas das forças policiais.
São os negros os assassinados socialmente todos os dias na comunicação social, num processo ardiloso e maquiavélico de limpeza estética racial. Em profunda e desgraçada oposição, a razão iluminada do século pós-abolição foi um século de escuridão.
O século novo que virá poderá salvar a todos e expiar a impotência da nossa geração. Uma potente e fulgurosa luz ao fim do túnel pode nos redimir dos erros do passado e forjar em completude uma nova e diferente nação.
Neste exato momento, quase um milhão de jovens negros do programa governamental de ações afirmativas no ensino superior estão prontinhos, nos bancos das universidades, para devolver à sociedade a justa oportunidade que lhes deu a nação.
São milhares de Joaquins Barbosa, Beneditas da Silva, Glorias Maria, Daianes dos Santos, Lázaros Ramos, Taíses Araújo, Martinhos da Vila, Pelés, Marielles e Oprahs que acreditaram na mudança, puseram a faca nos dentes, arrostaram os perigos e fizeram com maestria e valor suas lições de casa.
Um exército virtuoso de competências e talentos ávidos para desbravar e ocupar cargos e carreiras nas esferas privada e pública, prontos para assimilar o espírito animal empresarial e criar, montar micro, pequenas e grandes empresas e negócios. Um mar revolto de tubarões, ambiciosos, desejosos e prontos para singrar, ousar, driblar, criar, inventar negócios no admirável mundo novo da inovação tecnológica.
Enfim, uma tempestade perfeita no sentido positivo, que poderá catapultar uma virtuosa e nova revolução e livrar o novo século de uma nova escuridão.
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