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José Vicente: Negros, um século de escravidão

Esse muro de interdição tornou os negros escravos novamente, agora como cidadãos de segunda classe, separados e desiguais; sem repulsa ou contestação, foi um século de negação

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, em evento em São Paulo em 2017
José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, em evento em São Paulo em 2017 - Ze Carlos Barretta - 28.jun.17/Folhapress

Os 130 anos da abolição da escravatura dos negros, confrontados com nossos valores republicanos do século das luzes, evidenciam uma profunda e indefensável contradição: para os negros, a razão iluminada pós-abolição transformou-se num século de escravidão.

O vazio e a crueza da abolição grafada em dois artigos de lei foram a gênese, mas a ausência e a neutralidade intencionada da República foram a mãe dessa abjeta situação.

O mecanismo da engrenagem foi a parcialidade do Estado democrático de Direito. Apropriado pelas elites hegemônicas, além de proteger seus interesses e privilégios políticos e econômicos, construiu e institucionalizou uma narrativa emulando o racismo e a discriminação racial como desqualificador da diferença e justificador da oposição de superiores e inferiores, naturalizando, por conseguinte, um estado de apartheid social informal.

Essa verdadeira máquina de desalmificação e desumanização do negro questionou até mesmo sua viabilidade e oportunidade de existência como indivíduo e cidadão e tentou, de todas as formas, eliminá-lo espiritual e mentalmente, mediante a demonização e aniquilamento das suas crenças, sua cultura, sua identidade, sua religião, sua estética, seu corpo, cabelo e, precipuamente, a cor da sua pele.

Esse muro de interdição tornou os negros escravos novamente, agora como cidadãos de segunda classe, separados e desiguais. Sem repulsa ou contestação, foi um século de negação.

Cento e trinta anos antes e depois, são os negros os sem moradia, os sem emprego, os sem cultura, os sem voz. São os negros a maioria nas prisões perpétuas dos cárceres e os que são abatidos como moscas pelas balas perdidas e achadas das forças policiais.

São os negros os assassinados socialmente todos os dias na comunicação social, num processo ardiloso e maquiavélico de limpeza estética racial. Em profunda e desgraçada oposição, a razão iluminada do século pós-abolição foi um século de escuridão.

O século novo que virá poderá salvar a todos e expiar a impotência da nossa geração. Uma potente e fulgurosa luz ao fim do túnel pode nos redimir dos erros do passado e forjar em completude uma nova e diferente nação.

Neste exato momento, quase um milhão de jovens negros do programa governamental de ações afirmativas no ensino superior estão prontinhos, nos bancos das universidades, para devolver à sociedade a justa oportunidade que lhes deu a nação.

São milhares de Joaquins Barbosa, Beneditas da Silva, Glorias Maria, Daianes dos Santos, Lázaros Ramos, Taíses Araújo, Martinhos da Vila, Pelés, Marielles e Oprahs que acreditaram na mudança, puseram a faca nos dentes, arrostaram os perigos e fizeram com maestria e valor suas lições de casa.

Um exército virtuoso de competências e talentos ávidos para desbravar e ocupar cargos e carreiras nas esferas privada e pública, prontos para assimilar o espírito animal empresarial e criar, montar micro, pequenas e grandes empresas e negócios. Um mar revolto de tubarões, ambiciosos, desejosos e prontos para singrar, ousar, driblar, criar, inventar negócios no admirável mundo novo da inovação tecnológica.

Enfim, uma tempestade perfeita no sentido positivo, que poderá catapultar uma virtuosa e nova revolução e livrar o novo século de uma nova escuridão.

José Vicente

Advogado, doutor em educação e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

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