Descrição de chapéu

Tal como foi aprovado, o SUS da segurança pública vai trazer avanços no combate à criminalidade? NÃO

Da fragmentação ao amontoado

Movimentação em batalhão da PM na zona norte do Rio
Movimentação em batalhão da PM na zona norte do Rio - Fabio Teixeira - 10.fev.17/Folhapress
Jacqueline Muniz e Luciane Patrício

O Susp (Sistema Único de Segurança Pública) vira lei. Da formulação até a aprovação, passaram-se quase duas décadas de chá de cadeira dado por quem proclama a segurança pública como prioridade de Estado e de governo. Quinze anos para atravessar poucas quadras e uma avenida.

Em 2003, cria-se o Susp no Ministério da Justiça de Lula. Em 2012, vira projeto de lei na Presidência de Dilma. Em 2018, ressuscita rapidamente da gaveta do Congresso para dar sustança ao recém, e apressado, Ministério Extraordinário da Segurança Pública de Temer. 

Na Esplanada, estrada afora, chapeuzinhos vermelhos e lobos maus mexeram na cesta do Susp, tornando seu marco legal distante da concepção original. Qual?

Ser um Sistema, de verdade, e Único, de fato. Ter um arranjo adequado ao desenho político-administrativo brasileiro, garantindo atribuições federativas equilibradas e o seu financiamento. Cabia ao Susp redefinir e regulamentar o art. 144 da Constituição, que reproduz, desde a Carta de 1946, uma lógica fragmentária e de quase monopólios policiais.

Seu papel, segundo os idealizadores, era transformar órgãos avulsos e concorrentes em partes interdependentes de um todo cooperativo e governável. Para garantir capacidade de governo, construir o pacto federativo da segurança pública, definindo competências exclusivas, partilhadas e redundantes dos entes federados. Para permitir capacidade de gestão, pôr de pé a "arquitetura institucional do Susp". Essa construção técnico-política foi esquecida.

Nós, que participamos da criação do Susp, recomendamos correções e inclusões encampadas por parlamentares progressistas. A relatoria acatou as que não afetavam o coração da lei, que retrocedeu a segurança pública a questão policial e rebaixou o Susp a um clube de serviços, onde sempre cabe mais um quando se usam lobbies corporativistas. 

Junto e misturado é legal na balada, mas é temeroso quando se improvisa com o poder de polícia. Espadas, emancipadas, cortam para todo lado. Foi-se da fragmentação crônica ao amontoado invertebrado. Oficializaram-se como esporte nacional os conflitos de competência, a bateção de cabeça e as carteiradas entre agentes da lei.

O Susp da lei converte-se em uma agência de fomento de operações policiais. Inaugura-se o caixa extra para o mundo reativo e provisório das ações conjuntas e das forças-tarefa. Desvaloriza-se a rotina dos policiamentos para todos em favor da excepcionalidade do espetáculo operacional que serve a alguns. A política se torna refém de saldos policiais. Adota-se o extraordinário como modo de governar.

O Susp da lei traz um horizonte perigoso de nacionalização que mobiliza indivíduos armados em vez de integrar suas instituições. Diante de greves ou outros motivos, arrisca-se dar vida a um exército do B, que desestabiliza o jogo democrático e desafia a capacidade de agir das Forças Armadas. 

O palavreado democrático está lá: direitos humanos, cidadania, participação. Papel bonito com recheio duvidoso. A ideia-força é a defesa social, um fóssil de 70 anos.

Sepultou-se a segurança cidadã em favor de uma criminologia ultrapassada do "nós contra eles", ineficaz no controle da criminalidade violenta e que perverte o trabalho da polícia e da Justiça. 

É bom que atores políticos ao centro, à esquerda e à direita percebam que a espada entregue a si mesma, cedo ou tarde, corta a língua da política e rasga a letra da lei. Governar requer que a espada não defina, ela mesma, a extensão e a profundidade de seu corte.

Jacqueline Muniz e Luciane Patrício

Antropólogas e professoras do Departamento de Segurança Pública da UFF (Universidade Federal Fluminense)

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.