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Sílvia Corrêa

Médicos que não querem conversa

Diálogo com paciente é essencial para diagnóstico

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Sílvia Corrêa, em foto de 2017 - Keiny Andrade - 25.set.17/Folhapress
Sílvia Corrêa

Meu pai tem 80 anos e começou a ficar mais ofegante quando corria para pegar o ônibus (nada mau!).
Decidiu, milagrosamente, ir ao cardiologista. Marcou pelo plano, esperou duas semanas pela consulta (nada mau?) e, claro, ficou na sala de espera uma hora além do horário marcado (péssimo!).

Na sala, um homem entre 30 e 40 anos estava sentado atrás de uma mesa, tomando notas aparentemente em um prontuário, de cabeça baixa. Meu pai entrou, fechou a porta e disse "bom dia, doutor", dirigindo-se à única cadeira vazia.

Sem se mexer nem desviar os olhos do papel, o médico respondeu: "Bom dia. O que o sr. tem?".
Meu pai ainda esperou alguns segundos para reagir, com esperança de que o médico o olhasse e o convidasse a sentar. Desistiu.

Sem nem sequer notar que o silêncio se prolongara além da conta, o doutor seguiu preenchendo a ficha sabe-se lá de quem e só foi retirado do transe burocrático pelo tapa que meu pai deu na mesa (péssimo"¦).
O médico ergueu os olhos, arregalados atrás das lentes dos óculos. "Se eu soubesse o que eu tenho, não estaria aqui. O sr. quer saber o que eu sinto, doutor?", indagou o paciente.

O cardiologista respirou fundo, abriu um largo sorriso, fechou o prontuário, apontou a cadeira a sua frente e se desculpou. Iniciou um longo discurso sobre os baixos repasses dos planos de saúde, a necessidade de encher a agenda, a impossibilidade de dar atenção adequada às pessoas. Gastou mais tempo se explicando do que teria gastado se seguisse um script mais humanizado.

Além de cruel do ponto de vista da assistência ao paciente, o círculo vicioso movido pela pressão de redução de custos é ineficiente: um verdadeiro tiro pela culatra. E o raciocínio é simples.

No final do ano, oftalmologistas das universidades da Califórnia e de Ottawa publicaram um estudo no qual afirmam que a conversa inicial com o paciente, sozinha, pode levar a 90% dos diagnósticos. Explico.

Desde a década de 70 os próprios médicos se perguntam qual a contribuição que cada uma das partes do exame clínico pode dar para que eles identifiquem o problema que afeta o doente.

No primeiro e clássico estudo, publicado em 1975 pelo British Medical Journal, professores de quatro hospitais ingleses se dispuseram a anotar a principal hipótese diagnóstica à qual haviam chegado ao final da anamnese, do exame físico e dos exames laboratoriais do paciente, respectivamente. Dois meses depois, as anotações de cada uma das fases foram comparadas com o que foi considerado o diagnóstico final.

Em 66 dos 80 casos, a primeira hipótese diagnóstica já era a correta logo após a anamnese. Para outros seis pacientes a suspeita mudou depois do exame físico. E, em sete casos, só se chegou à suspeita final depois dos exames laboratoriais (para um dos pacientes os médicos não chegaram a nenhuma conclusão).

Trocando em miúdos: uma boa conversa inicial pode garantir 80% dos diagnósticos, permitindo que o médico, com mais evidências e mais confiante em seu raciocínio, recorra a um número menor de exames e, por tabela, onere menos os planos de saúde.

A capacidade de se comunicar é, portanto, uma habilidade clínica tão necessária como o domínio da semiologia ou da fisiologia. E ainda tem médico que não quer saber de conversa.

Sílvia Corrêa

Jornalista e médica-veterinária, mestre pela USP e professora de pós-graduação

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