Descrição de chapéu
Marcos Augusto Perez

O público, o privado, tinta cinza e cor-de-rosa

Há um surto de apropriação indevida da coisa pública

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Entrada da área residencial do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, que passou por reforma - Bruno Santos - 25.abr.19/Folhapress
Marcos Augusto Perez

As autoridades públicas devem agir impessoalmente. A separação da coisa pública do patrimônio pessoal dos governantes é um princípio básico do Estado democrático de Direito. Estamos no século 21 e ficar repetindo esse tipo de pensamento parece algo desnecessário. Mas, infelizmente, não é!

Em 2015, no curso das prévias eleitorais americanas, um escândalo veio à tona para comprometer a então candidata Hillary Clinton. A democrata, enquanto fora secretária de Estado, teria criado uma conta e utilizado um servidor privado, instalado em sua casa de Chappaqua (Nova York), para cursar e-mails de sua comunicação pessoal e oficial (em vez de utilizar uma conta pública protegida), misturando, propositalmente ou não, a comunicação pública com a privada. A candidata se livrou da condenação criminal, mas o escândalo custou a Presidência da maior potência do Ocidente.

O fato é que há uma espécie de surto de apropriação indevida da coisa pública em curso. Há manifestações mais ostensivas desse fato, no cotidiano governamental, do que o tom de cinza da tinta usada pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), para pintar os lambris e a mobília do Palácio dos Bandeirantes.


Um dos exemplos mais trágicos dessa apropriação é o que vem ocorrendo com a comunicação da Presidência da República e de outras autoridades públicas por meio das redes sociais. Ali, o presidente (confundindo sua comunicação pessoal com a institucional da Presidência) usa e abusa da prática de confundir o espaço público com o privado.

O presidente (ou seria o sr. Bolsonaro?) ataca a mídia e os opositores de seu governo, veicula vídeos (em que aparece como presidente da República no exercício de sua função) e outros que nada têm a ver com a função.

Tornar a figura pessoal o centro das atenções na política de comunicação institucional do governo viola a regra básica da impessoalidade na comunicação pública, segundo a Constituição. Pode significar que o presidente passou a utilizar-se ou a apropriar-se indevidamente da Presidência e de sua comunicação institucional para seguir à frente de uma campanha eleitoral permanente e da autopromoção. Seria um modo de praticar o desvio de poder, deturpando as finalidades da comunicação institucional e a figura da Presidência da República.

A separação entre a figura pessoal do presidente, do político, da pessoa física e a instituição Presidência é fundamental para o correto funcionamento do Estado democrático de Direito. Antes de ser presidente, o político emite opiniões pessoais; uma vez presidente, fala em nome do povo brasileiro, do Estado, representando-os como mandatário.

A isso o direito público denomina função: um conjunto de atribuições que o governante executa em cumprimento do que lhe impõem a Constituição e as leis e não como resultado de sua vontade pessoal: “A government of laws and not of men” no dizer de John Adams, o segundo presidente norte-americano.

Esse modo de agir, ademais, vem contaminando boa parte do restante da máquina estatal. Agentes públicos que falam barbaridades em público ou via redes sociais a defender, por exemplo, que mulheres usem vestimentas cor-de-rosa (uma clara reação aos mandamentos constitucionais contra a discriminação de gênero ou de opção sexual); outros que pregam alinhamentos políticos em contrariedade com os interesses econômicos no país, pela mera satisfação de seus objetivos ideológicos; ou os que disseminam o discurso de ódio ou as chamadas fake news junto à sociedade com, mais uma vez, objetivo de autopromoção.


As mídias sociais podem ser uma ferramenta importante para os negócios, para o estreitamento de laços entre os amigos, para o acesso à informação e para o debate democrático de ideias. Já a sua utilização pelas instituições públicas deve observar o mandamento básico da impessoalidade, sob pena de alargarmos a via da utilização da comunicação governamental para a satisfação dos desejos pessoais ou ideológico-partidários dos governantes e colocarmos em risco, assim, a própria legitimidade das instituições do Estado.

Marcos Augusto Perez

Professor associado de direito administrativo da Faculdade de Direito da USP

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