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Daniella Meggiolaro Paes de Azevedo e Ana Carolina Moreira Santos

Não há Justiça sem freios ao arbítrio

Na lei do abuso de autoridade, o cidadão prevalece

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Daniella Meggiolaro Paes de Azevedo Ana Carolina Moreira Santos

Como explicar o desconforto gerado pela lei do abuso de autoridade nas instituições que têm, justamente, a responsabilidade de aplicar a lei e garantir direitos? Afinal, se há uma qualidade a ser destacada no texto aprovado recentemente pelo Congresso é a sua capacidade de colocar limites à atuação de agentes públicos que fazem da Justiça um instrumento de concretização de ideais pessoais e subjetivos, ao arrepio da segurança jurídica do país.

Exemplos não faltam para ilustrar o estado de coisas que a nova lei enfrenta. Nas audiências de custódia, que recentemente foram alvo de um amplo estudo por parte do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), juízes ignoram as previsões legais e decretam prisão provisória de maneira generalizada, além de negligenciarem ilegalidades cometidas durante o flagrante, como é o caso da tortura.

O presidente Jair Bolsonaro (PSL), que havia vetado 36 pontos em 19 artigos do projeto de lei sobre abuso de autoridade, beneficiando principalmente a categoria policial; o Congresso, porém, derrubou parte deles e sancionou a lei - Amanda Perobelli - 10.out.19/Reuters

Em seu exercício profissional, advogados são impedidos de acessar procedimentos de seus constituintes, juízes negam despachos relacionados a medidas urgentes, empecilhos são interpostos para a realização de entrevistas reservadas com clientes presos. Muitas vezes, essas violações extrapolam a prerrogativa profissional para atingir, pessoalmente, a figura dos advogados —como ocorre nas revistas constrangedoras em fóruns e presídios, a exemplo do caso da advogada paulista Lucieli Regina da Silva, detida ao utilizar um absorvente interno durante visita a um cliente preso.

Autoridades que já se manifestaram contrariamente à nova lei afirmam que ela estipula tipos penais abertos. Vale salientar que instituições historicamente comprometidas com a redução do alcance do direito penal foram contrárias a propostas anteriores sobre o mesmo tema e que, de fato, estavam marcadas pela imprecisão. Não é o caso do texto aprovado —e que, aliás, é fruto de um intenso debate público no Congresso. É importante notar que os tipos penais abertos não são novidade em nosso ordenamento e isso nunca incomodou o Ministério Público ou o Judiciário. De qualquer forma, como é natural, a jurisprudência acomodará as situações fáticas às hipóteses legais, e isso de maneira alguma diminui a importância democrática da lei. 

Outra crítica é a de que os problemas que o texto endereça já eram resolvidos por meio de recursos, mas é importante separar condutas. A nova lei não tem como alvo a mera controvérsia jurisdicional —os chamados crimes de hermenêutica—, mas sim as ações que desrespeitam pilares da democracia, como os princípios da legalidade e da dignidade. Não estamos falando de trivialidades, mas de violações graves, que ferem de morte o Estado democrático de Direito.

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O presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), Fábio George Cruz da Nóbrega, diz que haverá enxurrada de ações contra policiais, juízes e membros do Ministério Público - Pedro Ladeira - 28.set.19/Folhapress

Percebe-se, ainda, um rechaço particularmente eloquente aos dispositivos que versam sobre as prerrogativas da advocacia. Não é demais reforçar o óbvio: esse tipo de abuso é também uma violação ao direito fundamental à ampla defesa. Em um contexto em que a advocacia, sobretudo em âmbito criminal, é rotineiramente confundida com a figura da pessoa assistida, a proteção trazida pela nova lei é mais do que necessária —é urgente. 

Em entrevista a esta Folha, o procurador Fábio da Nóbrega afirmou que os dispositivos da nova lei gerarão “intranquilidade” ao MP e ao Judiciário. Intranquila é uma sociedade fadada a conviver com os abusos de poder que emanam daqueles que possuem o monopólio da força e do direito de punir. Intranquila é uma sociedade que criminaliza o trabalho da advocacia. A lei do abuso de autoridade, nesse sentido, faz prevalecer a autoridade de quem de fato a detém: o cidadão.

Daniella Meggiolaro Paes de Azevedo

Advogada criminalista, presidente da Comissão Especial de Direito Penal da OAB-SP e vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Ana Carolina Moreira Santos

Advogada criminalista e vice-presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP

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