Um efeito do amadurecimento da Lei Anticorrupção é a ampla adoção de programas de integridade por parte das empresas de diversos setores, como conjunto de políticas e procedimentos de controle, incentivo à denúncia e aplicação efetiva de um código de conduta para prevenir a prática de atos lesivos à administração pública.
Esses programas funcionam bem, mas a proteção oferecida por eles não é absoluta. Mesmo com um compliance robusto, a empresa ainda estará sujeita à eventual ocorrência de ilícito, praticado em seu nome por representante ou intermediário. Cedo ou tarde, esse fato será denunciado no canal da empresa e deverá ser investigado de forma independente, como manda a boa prática.
Comprovado o ato ilícito, a empresa corrige as falhas detectadas, pune os responsáveis e resolve colaborar com as autoridades. Propõe um acordo de leniência, para reduzir a multa a ser paga (a colaboração não isenta a empresa da sanção). Esse sistema pragmático, adaptado do modelo norte-americano, pressupõe que os setores público e privado trafeguem juntos no caminho da prevenção, detecção e punição da corrupção. Mas estamos no Brasil —e, por aqui, o pragmatismo encontra obstáculos em cada esquina ou em cada guichê.
Da iniciativa de colaborar podem decorrer duas situações igualmente indesejadas. Na primeira, a administração pública nega a possibilidade de acordo porque já tem conhecimento e provas do ilícito. O denunciante pode ter relatado o fato no canal de denúncias da empresa e, também, na ouvidoria do órgão público envolvido. Na segunda, a administração pública condiciona a celebração do acordo ao pagamento de valores adicionais à multa a título de reparação de danos que não podem ser suportados financeiramente pela empresa —ou com os quais ela não concorda.
Em ambos os casos, a não celebração do acordo obriga o órgão público a instaurar um processo de responsabilização, que poderá demorar meses ou até anos, para que a multa seja aplicada. Caso não paga, ela será inscrita em dívida ativa para cobrança judicial, o que também levará um longo período de tempo.
Se no entender da administração houver prejuízo ao erário, será instaurado um processo especial de tomada de contas para apurar os responsáveis e quantificar o dano. Esse processo específico tramitará no Tribunal de Contas, cuja decisão terá eficácia de título executivo, a ser cobrado por via judicial. Mais alguns anos se passarão e, ao final, pode ser que já não existam condições para pagar essa dívida. Talvez a própria empresa tenha deixado de existir. Dá para imaginar o custo final desses processos para o contribuinte? Vale a pena? É claro que não.
O acordo é sempre o melhor caminho. Não é pouco a empresa reconhecer sua responsabilidade objetiva, pagar uma multa, investir na melhoria de seu programa de integridade e submeter-se a um monitoramento do Estado durante um período de três ou mais anos. Oferecer informações inéditas não é, nem nunca foi, um requisito imposto pela lei brasileira para o acordo de leniência.
Também não é requisito legal da leniência assumir compromisso de quitar danos com os quais a empresa não concorda, calculados unilateralmente pela régua do órgão supostamente lesado. Por que não aceitar, como prova, a apuração de prejuízo produzida por investigador independente ou empresa de auditoria forense que, diferentemente do órgão estatal, pode ter acesso à contabilidade da empresa?
A boa-fé é um princípio basilar do processo negocial, e a empresa merece um voto de confiança do Estado quando comparece espontaneamente como colaboradora. Estamos caminhando bem para a consolidação do acordo de leniência como solução alternativa de litígios com o Estado. Para as empresas, é um legítimo instrumento de defesa. Para os governos, uma ferramenta preciosa para dar celeridade ao processo sancionador e poupar recursos públicos, cada vez mais escassos.
Mas o acordo de leniência não pode ser um mero instrumento de arrecadação ou um cheque em branco, com risco de não ser compensado por falta de fundos.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.