A crise gerada pelo novo coronavírus forçou uma trégua parcial entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores, com retomada do diálogo e um pacote de apoio orçamentário aos estados. Resta ao menos um aspecto alarmante no processo, contudo.
No compreensível afã de proteger populações do avanço da pandemia, autoridades municipais, estaduais e até do Poder Judiciário têm adotado às pressas medidas, em alguns casos inócuas, para impedir o trânsito de veículos e o acesso a cidades, estados e regiões —numa escalada arbitrária, irracional e, não raro, inconstitucional.
O exemplo de maior visibilidade foi o de Wilson Witzel (PSC), do Rio de Janeiro, que isolou a região metropolitana com restrições ao transporte intermunicipal. Romeu Zema (Novo) impediu ônibus de entrar e sair de Minas Gerais. Ao menos outros seis governadores tomaram decisões do gênero.
Logo, porém, vieram as iniciativas de prefeitos. As cidades paulistas de Ubatuba e Ilhabela, por exemplo, limitaram o acesso de não moradores. A Justiça de São Paulo, ademais, determinou um bloqueio na rodovia dos Tamoios, que liga a capital ao litoral norte.
A reação inicial do governo Bolsonaro se deu com a edição de uma medida provisória para disciplinar a competência federal —não de outros entes federativos— em decisões relativas ao fechamento de aeroportos e rodovias.
Embora pudesse ser lida como reação aos governadores, a MP é correta e contou com respaldo jurídico do Supremo Tribunal Federal, em consulta informal. A Constituição já estabelece que cabe à União legislar sobre trânsito e transporte; para além do aspecto legal, não é difícil imaginar as consequências desastrosas de um fechamento caótico de divisas pelo país.
O presidente, entretanto, acabou por ceder aos estados —e justamente no que não poderia. Na noite de segunda-feira (23), o governo publicou resolução que transfere a órgãos de vigilância sanitária dos estados o papel de determinar “restrição excepcional e temporária por rodovias de locomoção interestadual e intermunicipal”.
Trata-se de gambiarra, pois a Carta prevê que tal delegação se dê por meio de lei complementar. Mais que isso, trata-se de um desatino.
O direito de ir e vir está entre os mais básicos do mundo civilizado. Cerceá-lo se admite apenas nas circunstâncias excepcionais previstas na legislação. No contexto da crise, o bloqueio desordenado de vias ameaça o abastecimento de alimentos, remédios e outros produtos de primeira necessidade.
Decerto que a emergência sanitária pode justificar medidas drásticas, mas estas têm de ser tomadas com planejamento, visão nacional e ponderação de impactos econômicos —o que será quase impossível com 27 unidades da Federação a arbitrarem suas próprias regras.
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