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Mara Gabrilli

Nenhuma vida vale menos

Deficiência não é um agravante para o contágio, mas a vulnerabilidade, sim

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O mundo se debruça diante da ameaça de um vírus que tem tirado vidas, inclusive daqueles que mais se dedicaram e se dedicam a cuidar das nossas, caso dos idosos e dos profissionais de saúde. Isso por si só já fere a alma. Mas o lastro deixado por esse inimigo, invisível a olho nu, vai além. Está na ameaça às economias globais e no prato vazio de quem tem fome. Está no medo, na ansiedade, na sensação de impotência. Você, leitor, já deve ter vivenciado algumas dessas sensações. Talvez todas. Mas tomo aqui a liberdade de lhe provocar um exercício de empatia.

O que você faria se, em meio a toda a vulnerabilidade a qual fomos expostos, ignorassem sua própria existência? Como se sentiria se, hipoteticamente, existisse uma fila para salvar pessoas da pandemia, mas a sua fosse considerada a menos importante?

A senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que foi infectada pelo novo coronavírus e ainda se recupera - Eduardo Tavares - 17.abr.20/Folhapress

É exatamente isso o que as pessoas com deficiência no mundo têm amargado nessa crise. Falo de cerca de 1 bilhão de pessoas —15% da população mundial, de acordo com a OMS— que têm sido excluídas das estratégias de apoio, prevenção e combate ao novo coronavírus.

Pessoas com deficiência física, por exemplo, não foram lembradas no momento em que a orientação máxima da OMS é o isolamento social e a higienização de mãos. O que faz um tetraplégico que precisa das mãos de outra pessoa para fazer tudo, inclusive tirar um cabelo dos olhos? No caso de pessoas com deficiência visual, o que fazer quando sua única orientação para se locomover é por meio do tato? E as pessoas com deficiência intelectual, que não são pensadas em momento algum no sentido de uma comunicação mais simples e didática? Àqueles que não ouvem, o descaso está na ausência de legenda e da língua de sinais —no Brasil, a Libras—, que não tem sido incluída em diversos pronunciamentos de líderes mundiais e na mídia de uma forma geral. Como se não ouvir tornasse essas pessoas imunes ao vírus.

Como membro do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, tenho acompanhado e alertado sobre diversas violações. Nossa provocação inclusive originou documento com as diretrizes a serem adotadas pelos Estados Partes signatários da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2009.

A Human Rights Watch, organização que defende os direitos humanos, documentou condições desumanas em diversos países. Na Croácia, no Cazaquistão, na Índia, na Rússia e na Sérvia, milhões de adultos e crianças com deficiência vivem em ambientes residenciais segregados e superlotados, onde enfrentam negligência e abusos. Em Gana, na Indonésia e na Nigéria há denúncias de pessoas com deficiência algemadas e trancadas em instalações religiosas ou administradas pelo Estado. Essa é a forma que eles entendem o isolamento social.

Nos EUA, profissionais de saúde estão desenvolvendo protocolos para responder à Covid-19, incluindo um racionamento que determinará quem terá e não terá acesso a tratamento. Uma triagem perversa e que caminha de acordo com o mesmo movimento discriminatório que vem matando a população negra na nação liderada por Donald Trump.

No Brasil, o Instituto Mara Gabrilli, fundado por mim em 1997, fez um levantamento para ouvir as reais necessidades das pessoas com deficiência na pandemia. A instituição já recebeu cerca de 5.000 participações, e a devolutiva só chancela o descaso que essa população vive há décadas.

Falamos de mães solteiras em pânico, com medo de morrer na pandemia e não ter com quem deixar seus filhos. Pessoas com autismo se mutilando dentro de casa porque tiveram sua rotina alterada e não contam com nenhum suporte. Pessoas com deficiências severas que vivem em comunidades e hoje estão sem cuidados, prostradas numa cama, com o corpo coberto por escaras. Pessoas que estão morrendo no puro esquecimento.

Na semana passada, apesar de todos os cuidados e precauções, fui diagnosticada com Covid-19. Estou bem, em repouso e sigo em isolamento domiciliar. É preciso alertar para o fato de que eu, uma senadora da República, com todos os cuidados tomados, não consegui ficar imune à doença. Imaginem quantos brasileiros, espalhados por todo o Brasil, não estão passando pela mesma situação.

Nação alguma no mundo esperava estrago em proporções tão avassaladoras, mas país algum se reerguerá sem adotar providências para garantir que as medidas tomadas na crise contemplem a todos. A deficiência por si só não é um agravante para o contágio, mas a condição de vulnerabilidade dessas pessoas, sim.

Governo nenhum no mundo pode fechar os olhos para essa questão. Afinal, vidas não se contabilizam, apenas se preservam.

Mara Gabrilli

Senadora da República (PSDB-SP), ex-deputada federal (2011-18) e representante do Brasil no Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

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