Voltou o debate sobre as condições e os limites para punir gestores públicos. O presidente Jair Bolsonaro editou medida provisória sobre responsabilização por atos durante a pandemia (medida provisória 966). Alguns controladores de contas, promotores e mesmo juízes receberam mal a iniciativa, que dificultaria o seu trabalho e poderia garantir impunidade. Partidos políticos foram ao Supremo Tribunal Federal. Em editorial, esta Folha foi crítica e estendeu as suspeitas à lei 13.655, que, em 2018, alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Ambas as normas condicionam a punição de gestores à demonstração de “dolo ou erro grosseiro”. Para o editorial, pareceu inviável “comprovar o que constitui um erro grosseiro”, que envolveria “critérios de enquadramento fluidos”, “subjetividade essencial”, “predicados vaporosos” e “insegurança jurídica”. O editorial descreveu a LINDB como “contestada pela comunidade jurídica e por órgãos de controle”.
Divergências são naturais e saudáveis. Mas a descrição da LINDB não parece fiel. A ideia de erro grosseiro é usada há décadas no meio jurídico, inclusive no STF. A LINDB também a usou, mas não a definiu, de modo que ficaram valendo a literatura jurídica e a jurisprudência, vastas a respeito. Um exemplo. Em 2017, antes da LINDB, o Supremo suspendeu punição que havia sido imposta pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Em 2019 voltou ao caso, usando a LINDB e a noção de erro grosseiro. Para o STF, a falha havia ocorrido porque o TCU, com base “em mera interpretação distinta dos fatos, deixou de comprovar o erro inescusável” do gestor. O acórdão (mandado de segurança 35.196) foi além e, seguindo sua jurisprudência, lembrou outros protocolos que o TCU deveria ter observado.
Logo, quando a LINDB exigiu dolo ou erro grosseiro, não vinculou a punição dos gestores a subjetividades, mas a protocolos que a jurisprudência e a literatura jurídica, com seus métodos de trabalho, estabeleceram em conjunto. Não há subjetivismos. Quem é do meio jurídico os conhece e segue. O valor desses protocolos é justamente impedir outros subjetivismos: os dos controladores públicos, que geram maus resultados, como no caso que envolveu o TCU.
Por que, então, alguns controladores reclamaram da LINDB e da própria medida provisória? Bem, aqui a verdadeira polêmica. Ao contrário da LINDB, eles entendem que protocolos dificultam punições e, prometendo lutar contra os desvios, defendem mais subjetividade, só que para si mesmos.
A diferença entre o médico e o curandeiro não está nas intenções ou qualidades morais, mas nas regras sob as quais atuam. Para identificar doenças e definir tratamentos, o médico observa protocolos. A definição e a alteração desses protocolos são coletivas. E seu conteúdo vem de milhares de pesquisas, cuja realização e atualização também têm protocolos. Quem é do meio os conhece e segue. Já o curandeiro é um sujeito bem-intencionado que promete resultados fáceis, confia cegamente em suas intuições e recusa todos os protocolos gerais.
A proposta de certos controladores para a luta contra desvios públicos no Brasil se inspira nas supostas vantagens do curandeirismo sobre a medicina tradicional. Defendem um controle público cloroquina para acabar com a doença da corrupção e do desperdício. Contra esse movimento, a LINDB fez como os médicos: rejeitou o subjetivismo também para os controladores, insistindo no valor tradicional dos protocolos jurídicos.
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