A pandemia de Covid-19 trouxe a todos nós, que atuamos no sistema Judiciário, uma situação impensável. A sala de depoimento especial para crianças do maior Fórum Criminal da América Latina, o da Barra Funda, em São Paulo, de repente, silenciou-se. O trabalho passou a ser remoto, e a frenética rotina daquele lugar foi suspensa. Uma rotina de histórias sofridas, muitas vezes acompanhadas de lágrimas, de vergonha, de mãos pequenas e nervosas que buscam acolhimento e Justiça.
A preocupação em manter o atendimento à cidadania e em garantir segurança aos servidores e à população é agora acompanhada de uma outra igualmente urgente: neste período, de necessário isolamento social, como estarão as crianças?
O número de processos sobre a violência contra menores no estado de São Paulo caiu 40% no mês de abril, em comparação com o mesmo mês do ano anterior. O que à primeira vista parece ser uma boa notícia, torna-se um temor, já que esse dado pode mascarar o real quadro de agressões e abusos contra esse segmento da população. Saber que 76% dos crimes contra crianças e adolescentes são cometidos por familiares ou por pessoas muito próximas significa que, neste momento, essas vítimas estão em casa com seus possíveis agressores.
Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2019, 63,8% de todos os crimes de estupros no país, nos anos de 2017 e 2018, foram cometidos contra crianças, adolescentes ou pessoas em situação de vulnerabilidade. E a maior parte deles contra crianças entre 5 e 13 anos. Diariamente são notificados no Brasil, em média, 233 agressões contra crianças e adolescentes, conforme dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Os números são alarmantes, e sempre existiu um grande receio de subnotificação, o que reforça a suspeita de que a queda observada em abril não significa menos violência, mas mais desproteção e, consequentemente, menos oportunidades de os casos chegarem a conhecimento.
Ressalvando-se ser imperativo o cumprimento das medidas de distanciamento indicadas pelos especialistas como forma de controle da pandemia, outro ponto a ser considerado é o possível aumento de agressões motivado pelo próprio estresse que o confinamento causa. É fato que os problemas econômicos e o aumento das tarefas diárias dos adultos são ingredientes para aumentar as tensões dentro das relações familiares.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde relacionados a isolamentos anteriores por motivo de saúde pública, como, por exemplo, o surto de ebola, de 2014 a 2016, constatou-se picos de abuso sexual e violência contra criança e adolescentes naquele período.
Há uma outra possível explicação. São recorrentes os casos em que as vítimas encontram em terceiros externos à casa segurança para relatar os abusos, ou mesmo em que esses percebem que algo errado está acontecendo e buscam as autoridades. O papel de escolas, creches e serviços de saúde é também essencial para essa identificação, mas, com as escolas fechadas, a quem essas crianças podem recorrer?
Preocupado com esse cenário, o Tribunal de Justiça de São Paulo lançou a campanha “Não se cale! Violência contra a criança é covardia, é crime! Denuncie!”, em seu site e nas redes sociais, para alertar sobre os crimes, incentivar a denúncia e orientar como ela pode ser realizada.
O artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Agora, mais do que nunca, a sociedade precisa apropriar-se desse dever.
Esse contexto de distanciamento social acaba por colocar as crianças que sofrem abuso ou violência fora do radar de sua principal rede de proteção —por isso, é preciso sensibilizar e envolver toda a sociedade.
É fundamental que cada pessoa seja o fio condutor para que essa rede de proteção seja conectada. A responsabilidade pela vida dessas crianças e adolescentes é de todos e de cada um de nós.
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