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José Vicente

Nós queremos respirar

É contra esse joelho invisível, que nos sufoca todos os dias, que nos organizamos

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José Vicente

Advogado, sociólogo e doutor em educação, é fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, apresentador do programa "Negros em Foco" (TV Cultura), líder do movimento "Cotas sim" e membro do Conselho Editorial da Folha

A República brasileira, fundada sem povo, sob os escombros da escravidão e pela inflexão e tutela dos quartéis, já nasceu conceitualmente distorcida e inviabilizada. A esperança de sua correção e restauração repousou na capacidade ética, na grandeza do espírito e no compromisso franco e honesto da elite dirigente do futuro em conduzir e buscar de modo inegociável os propósitos de uma República sólida e genuína, que, ao final, se revelasse um Estado autônomo, impessoal e neutro. Coisa de todos.

O imperativo mais urgente e inadiável que se apresentou foi a necessidade e exigência inexorável de promover remoção dos entulhos do lixo tóxico da escravidão, reconstruindo e reformulando o pensamento e atitude mental construída a partir da racionalização e cristalização do caráter de coisa e de mercadoria do negro. E, consequentemente, da sua naturalização como indivíduo, inferior, nocivo, periculoso e indigno para receber e usufruir de tratamento humano, justo e igualitário.

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O advogado e sociólogo José Vicente, doutor em educação e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo - Zanone Fraissat - 7.nov.19/Folhapress

Não realizar essa profunda, exigível e inderrogável transformação, e não construir os mecanismos, ações e políticas estatais para superar esse quase sobre-humano desafio, seria negligenciar de maneira preordenada e, novamente, autorizar, associar e acumpliciar com a mercancia e o comércio dos cidadãos. Seria perenizar os lucros e rendimentos econômicos e financeiros extraídos dos corpos negros que estruturaram e justificaram o regime da escravidão.

Sem extirpar o racismo e sem impedir a prática da discriminação racial contra os negros como prática social licenciada, o resultado seria a formulação da distinção dentro da isonomia republicana. Seria antecipar e estimular a reconstituição da exploração e usura dos corpos negros, agora, pela exclusão e segregação do espaço público e privado, principalmente pela apropriação, interdição e monopólio de bens, frutos, riquezas, oportunidades e privilégios sociais. Seria refundar o sistema de servidão, no coração da República e do Estado democrático de Direito.

O resultado certeiro seria o uso político dele pelos demais grupos sociais para manutenção, reprodução, proteção e garantia dos privilégios, fragilização da competição social, apropriação indébita e usufruto irregular dos espaços, ambiências e oportunidades que, por direito e justiça, são pertencentes, disponibilizáveis e assegurados aos negros.

Desgraçadamente, nem a elite de dantes nem as que a sucederam estiveram dotadas de estatura, grandeza e capacidade que a República conceitualmente sempre exigiu. Disso resultou como legado, uma nação de apartheid racial garantida e suportada por um Estado democrático de Direito, mas, sobretudo, pela brutalidade e crueldade da violência sistêmica e estrutural pública e privado que, perversa e estrategicamente, interdita, cerceia, distorce, apaga e desconstitui a presença, a estética e o valor da construção e realização do negro na sociedade. Um país todo que silencia e que, casuisticamente, dissimula e se omite diante do genocídio autorizado que violenta e elimina impunemente as vidas negras.

George Floyd, nos Estados Unidos, e todos os George Floyd do Brasil e do mundo não podem ter suas vidas arrancadas pelo racismo. Precisam e têm o direito sagrado de poderem livremente respirar. É contra esse estado de coisas que nos levantamos. É contra esse joelho invisível que nos sufoca e asfixia todos os dias e que nos organizamos nos juntamos e decidimos mais uma vez, coletivamente, fortalecer e amplificar nossas energias.

É com espírito de concórdia, de diálogo e de reivindicação, mas também com a capacidade de organização, trabalho, realização, foco e direcionamento, que nós e nossas instituições, conduziremos nossas habilidades para responder de maneira objetiva e propositiva as demandas e desafios mais urgentes e emblemáticos dessa questão.

O Movimento Ar já nasce grande, vistoso e cheio de entusiasmo. Queremos um país de iguais, em que todos, independentemente de raça ou cor da pele possam autonomamente encher seus pulmões, onde e quando quiser e de forma espontânea, desimpedida e soberana, possam livremente respirar.

Para nós as vidas negras importam de verdade. Tirem os joelhos dos nossos pescoços: Nós queremos respirar!!!

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