Quando certa manhã acordei de sonhos intranquilos, deparei-me com um artigo de um talentoso jornalista que pretendia desqualificar a enologia. “A enologia é uma fraude? (27.out.2020)” desvalorizava também a arte de degustar, prática tão importante quanto prazerosa. Era um texto repleto de distorções, escrito por alguém mal-informado.
Vamos aos fatos. A enologia é uma ciência que compreende práticas como o plantio e o cultivo das videiras, a adequação dos mais diversos tipos de uvas ao solo, a elaboração do vinho e o conhecimento de climatologia, geologia, microbiologia, estatística e física, entre tantos outros.
No texto, o jornalista aponta a dificuldade (dificuldade não é incapacidade) que as pessoas têm em, ao beber, julgar um vinho, sugerindo que nossos olfato e paladar não são suficientemente bons para tal. Ele joga fora experiências e métodos desenvolvidos durante décadas por grandes profissionais e ignora centenas de publicações sobre a prática da prova.
O conhecimento sobre degustação (análise sensorial) é milenar e chega à modernidade com os trabalhos de várias escolas, incluindo os publicados na década de 1960 pela “cientista do gosto” Rosie Marie Pangborn, citada por ele como capaz de fazer ruir a indústria enológica.
Mas, desde então, escolas, universidades e autores autônomos desenvolveram tantos outros métodos e práticas. Émile Peynaud, o mais prestigiado enólogo da história, publicou, na virada dos anos 1970, a bíblia da degustação “O Gosto do Vinho”, estudo meticuloso sobre como analisar a bebida, enfatizando a relação entre análise sensorial e laboratorial. No século atual, Joanna Simon, Jancis Robinson, Jacky Rigaud e sua degustação geossensorial, entre tantos outros, aprofundaram a importância do ato de provar vinhos. Isso sem falar nos provadores de café, cerveja, alimentação etc.
O ponto de partida que motivou o jornalista a desacreditar a degustação foi o caso de um restaurante nova-iorquino onde, equivocadamente, garrafas foram trocadas, e o cliente que pediu um vinho de R$ 11 mil bebeu um de R$ 100 escolhido por um casal, que acabou desfrutando o consagrado Chateau Mouton Rothschild (o de R$ 11 mil).
Nenhum dos comensais de cada mesa percebeu que estava provando um outro vinho. Mas o que isso pode revelar contra o ato de degustar? Consumidores menos aptos, esnobes ou não, enganam-se em relação à qualidade de um vinho, mas nenhum conhecedor competente deixaria de perceber que um vinho de R$ 100 não era o desejado Mouton —ainda que eu ache que nenhuma bebida deveria custar tanto assim, mas isso é outra história.
Aproveito para dizer que o melhor é aprender (degustar) para o prazer. Para melhor desfrutar o vinho.
Por fim, afirmo fortemente que a enologia não é uma fraude, nem tampouco degustadores o são, tais como jornalistas, críticos, sommeliers, enólogos, educadores e enófilos competentes. Claro que há sujeitos esnobes, incompetentes ou de má-fé, mas isso ocorre em qualquer área —até mesmo na do jornalismo, o que não significa que o jornalismo o seja.
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