Incerteza é parte inerente da atitude científica diante da vida e do próprio fazer científico. Algum cientista pode garantir, com certeza, que não somos todos personagens de algum videogame alienígena, ou cérebros sem corpo mantidos em jarros, submetidos a um bombardeio de realidade virtual? Não, não pode.
O que um cientista responsável pode nos dizer, no entanto, é: toda a evidência disponível até o momento sugere que a realidade é isso mesmo que vemos aí, sem videogame ou cérebros em jarros. A hipótese que melhor explica nossas vidas é a de que somos animais de carne e osso vivendo num planeta rochoso, em órbita de uma estrela. Mas essa hipótese pode mudar —se evidências contrárias, fortes o suficiente, forem descobertas. É assim que a ciência funciona.
A exploração indevida dessa incerteza estrutural da ciência é parte da cartilha de grupos de interesse e movimentos negacionistas, pelo menos desde que o consenso científico determinou que fumar é o maior fator de risco para câncer de pulmão, ainda nos anos 1950. Grupos de interesse e empresas de relações públicas mobilizaram uma minoria de cientistas —alguns mercenários, outros, dissidentes sinceros— para magnificar a impressão de “controvérsia”; e a imprensa, ciosa de sua imagem de imparcialidade e pluralidade, deixou-se levar. Até 1979, o New York Times ainda dava “outro lado” para os fabricantes de cigarro cada vez que uma notícia ou reportagem mencionava os malefícios do tabaco.
O mesmo cacoete se repetiu no caso do aquecimento global antropogênico, tratado pela mídia como “controverso” ou “indefinido” mesmo depois de a questão ser dada como fechada pela comunidade de especialistas no assunto. Vozes isoladas, muitas vezes de fora do campo da climatologia, recebiam (em alguns casos, ainda recebem) espaço e relevância iguais aos de relatórios assinados por centenas de pesquisadores e baseados em décadas de estudos.
Não que consensos científicos sejam infalíveis, ou que candidatos ao papel de gênio dissidente nunca sejam gênios e jamais estejam certos —mas a questão final é sempre, como no caso dos cérebros em jarros, de hipótese e evidência: dados os fatos conhecidos, qual a melhor hipótese para explicá-los? Há fatos novos? Se houver, são relevantes?
Ao longo das últimas décadas, a imprensa vem, a duras penas, aprendendo isso: que questões de ciência não são meras questões de opinião, que buscar uma "cobertura equilibrada" de supostas disputas envolvendo consensos científicos na verdade apenas desinforma o leitor e, em questões de saúde, pode pôr sua vida em risco.
No entanto, o cacoete do falso equilíbrio nasce de uma virtude, a da humildade; e, talvez por isso, há quem sinta falta dele. Essa saudade é o que parece animar o artigo “A imprensa e a hidroxicloroquina” (28.dez.2020), cobrando uma cobertura que reflita o que o autor vê como “incerteza” em torno da eficácia do fármaco contra a Covid-19, basicamente porque “ainda há cientistas sérios estudando o assunto”.
O fato, no entanto, é que também há cientistas sérios que acreditam que vivemos numa simulação, e nem por isso a imprensa inclui, em toda notícia, a ressalva de que “estes fatos podem não corresponder necessariamente à realidade física”.
Tudo em ciência é incerto, mas frente às evidências disponíveis no momento, há incertezas científicas que são mais ou menos relevantes. Hoje, a incerteza quanto à ineficácia da hidroxicloroquina contra a Covid-19, em qualquer fase da doença, é irrelevante o suficiente para que a imprensa possa tratar essa ineficácia como “comprovada” sem medo de estar prestando um desserviço ao leitor e à saúde pública. Ou, então, vamos começar a pôr ressalvas “céticas” em notícias sobre a chegada do homem à Lua e em fotos que mostram a Terra redonda.
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