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Emerson Kimura

A imprensa e a hidroxicloroquina

Jornalismo sem ceticismo e nuance passa ideia de certeza onde ela não existe

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Emerson Kimura

Jornalista

A hidroxicloroquina é comprovadamente ineficaz contra a Covid-19. O seu uso já foi descartado. Não existe evidência a favor. Esse é o consenso científico. Muita gente teoricamente bem informada acredita nessas afirmações. Nenhuma delas, porém, está correta.

Então a hidroxicloroquina funciona? Não sabemos. Esse é o ponto. Ainda há dúvidas, mas a imprensa passa a ideia de que, com certeza, não funciona. E, no esforço de fortalecer esse discurso, o jornalismo comete uma série de erros.

Em 10 de setembro, editorial desta Folha (“Cloroquina encalhada”) citou uma pesquisa de “centenas de grupos de pesquisa” e uma “recomendação quase unânime de reguladores e associações médicas”, mas —assim como costuma fazer o presidente Jair Bolsonaro— não mostrou nenhuma evidência.

Em outro editorial (“Sem cura”; 25.jul.2020) já dizia que a hidroxicloroquina era “comprovadamente ineficaz”. Mas muitos cientistas continuam a estudá-la. Por quê? Alguém errou: o jornal ou os cientistas.

O editorial foi veiculado logo após a publicação de um estudo brasileiro no New England Journal of Medicine —que recebeu cobertura amplamente positiva no país, com reportagens semelhantes a “press releases”, sem questionamento algum.

Essa falta de ceticismo é um problema comum no jornalismo de ciência, mas tem aparecido apenas em relação a um dos lados do debate.

A reportagem “Site faz placar de pesquisas pró e contra uso de cloroquina” (22.ago.2020) ilustra bem isso. O texto citou como se fosse legítimo um estudo com resultados contra a hidroxicloroquina que usou dados aparentemente falsos e tivera a sua publicação cancelada pela Lancet —uma “fraude monumental”, segundo o editor-chefe da revista. O mesmo texto, porém, foi bastante cético com argumentos que sugerem possíveis benefícios no uso da droga.

Alguém pode alegar que as pesquisas com resultados negativos saíram em periódicos mais importantes, mas isso não justifica a falta de ceticismo na cobertura delas —isso é indefensável, independentemente do que digam, de onde tenham sido publicados ou de quem sejam os seus autores.

Em julho, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) pediu que a hidroxicloroquina fosse “abandonada no tratamento de qualquer fase da Covid-19”, e esta Folha foi bastante complacente com a entidade. O jornal não a questionou em nenhum momento e mostrou apenas o governo brasileiro como oposição —fortalecendo o discurso da SBI, já que ter Bolsonaro e seus asseclas como antagonistas em um debate científico é algo para se comemorar.

Ao destacar figuras intelectualmente toscas defendendo irresponsavelmente o uso da hidroxicloroquina, a imprensa tem se aproximado das redes sociais, nas quais declarações polêmicas e sem fundamento geram muito mais repercussão do que comentários técnicos e ponderados.
Isso gera a impressão de que apenas pessoas do nível de Bolsonaro, Donald Trump, Osmar Terra, Marco Feliciano e Carla Zambelli veem alguma chance na droga.

Vozes importantes e equilibradas, como a do epidemiologista britânico Nicholas White, que conduz um grande estudo com cloroquina e hidroxicloroquina, são ignoradas. Ele é contra o uso dessas drogas fora de ensaios clínicos, mas ressalta que são seguras quando corretamente administradas e talvez possam ajudar na prevenção ou no tratamento precoce —fases da Covid-19 em que persistem as maiores dúvidas sobre um possível benefício delas.

São situações bem diferentes das de pacientes hospitalizados, em estágios mais avançados da doença —para os quais há, de fato, resultados mais conclusivos contra o uso da hidroxicloroquina. A imprensa frequentemente não faz a devida distinção dos casos, confundindo o debate.

Ao propagar um discurso sem nuance e polarizado, a mídia colaborou para chegarmos a um estado em que poucos têm dúvidas e muitos têm certezas. Mas, como lembra um artigo publicado no The BMJ (periódico da British Medical Association), “a certeza é o reverso do conhecimento”. Seus autores sugerem ouvir “aqueles que respeitam a incerteza” e que reconhecem evidências contrárias mesmo às suas convicções mais fortes.

A cobertura sem ceticismo favorecendo um discurso único, a caracterização estereotipada de quem ousa questionar esse discurso, a atenção exagerada aos extremos do debate e a falta de nuance ao tratar o assunto evidenciam a baixa qualidade do trabalho da imprensa —justamente em um momento em que ela é tão necessária.

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