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Ricardo Antunes

A peste e outros bichos

Curioso, ninguém consegue achar sinais de crime; caçar pedaladas é mais fácil

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Ricardo Antunes

Professor titular de sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH/Unicamp); autor de 'Os Sentidos do Trabalho' e 'O Capitalismo Pandêmico' (ed. Boitempo)

George Orwell, em “A Revolução dos Bichos”, foi buscar nos animais o ideal de humanidade, igualdade e liberdade, visando recuperar valores socialistas que as aberrações (tanto a capitalista como a stalinista) vilipendiavam.

Hoje, defrontamo-nos com novas variações do horroroso. Temos o diabo loiro, despenteado e pestilento, que converteu o grande império em exemplo trágico de combate à pandemia. Negacionista e anticientífico, o medonho se tornou o maior responsável pelas quase 400 mil mortes em seu país. Foi derrotado nas urnas, mas tenta resistir com sua indigência decrépita.

Já o seu quase símile londrino começou mal e só mudou quando soçobrou. Por pouco não foi desta para melhor. Foi salvo pela dedicação de dois imigrantes que labutam no sistema público de saúde inglês.

Enquanto isso, nas bandas de cá, outro dito-cujo se ouriça para preservar sua matilha, com a força da milícia e adulando a polícia. Disse que defenderia os pobres, mas vociferou mesmo ao defender a santidade da propriedade. Os “novos bispos” e os velhos havanos chafurdaram no regozijo, gritando pela enésima vez: “Viva o nosso mito!”.

Nesta terra em que se plantando tudo dá, praguejou a variante mais escroque do bonapartismo. Que se apresentou na campanha eleitoral como sendo contra o “sistema” e “contra todos”. E que logo se tornou amigão do modorrento e tenebroso, o que urdiu o golpe para tentar eternizar seu alvará.

Tal qual um pícaro do caos e da destruição, negou desde logo a pandemia e jogou o país no precipício, acumulando um débito de mais de 200 mil mortes, muitas por asfixia, como tragicamente ocorreu nestes últimos dias em Manaus.

Nem o Parlamento do líder astuto e nada “maya” (no autêntico sentido indígena), nem os recentes presidentes do Supremo (“we don’t trust!”), conseguem encontrar sinais de crime. Curioso, parece que é mais fácil caçar pedaladas; mas aquelas, urge esclarecer, que a turma tucana da Lava Jato curitibana mirava.

Teremos que cruzar a barreira de quantas centenas de milhares de mortos para que este governo seja responsabilizado pela necropolítica em curso?

Foi exatamente para tentar salvar a própria pele (e de sua malta) que o coiso se encontra entrelaçado e atolado, de corpo e alma, com o pantanoso centrão, que gruda e adere na mesma intensidade em que puxa o tapete.

Se a fauna desta ficção já não fosse tão ilustrativa, podemos finalizar com o exemplo do canibal. Aquela variante que acha que trabalhadora doméstica não pode viajar, que funcionário público é parasita e que, sem eira nem beira, tal qual um biruta tresloucado, tagarela que daqui para frente, tudo vai ser diferente. Isto porque, no “moderno” cenário indigente do trabalho intermitente, quem trabalha, recebe. E quem não encontra emprego, foi-se... Justo ele, pura criatura do universo parasitário.

A pergunta que não quer calar é: até quando teremos que esperar para que finalmente se concretize a metamorfose do mito em mico?

Os bichos de Orwell devem estar pensando: estamos defronte de uma geração desconhecida de bilontra. E explicam: deles, até a peste se afugenta.

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