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Jerson Kelman

Milícias

Nós, os protegidos pela lei, temos duas alternativas para frear avanço do poder paralelo

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Jerson Kelman

Foi presidente da Sabesp de 2015 a 2018, diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de 2005 a 2008 e presidente da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento) de 2001 a 2004).

O Estado democrático de Direito sucumbe ao fascismo quando expressivos contingentes populacionais ficam à margem da proteção das leis. É solo fértil para a germinação da violência ordenadora. Quando uma família de comunidade desamparada pela polícia é vítima de roubo ou a jovem adolescente é violentada, a ação repressora do miliciano, embora ilegal, parece legítima aos olhos da população. E abre o caminho para a cobrança de uma “taxa de proteção”, que logo dá origem a outras taxas, frequentemente associadas ao uso ilegal das instalações das concessionárias de serviços públicos (eletricidade, água e TV a cabo). São os famosos “gatos”.

Quando o poder público impede a construção de residências populares numa área próxima aos empregos, em geral o faz para defender um interesse coletivo constitucionalmente assegurado. Por exemplo, a preservação do meio ambiente. Porém, quase sempre as edificações são erigidas assim mesmo, com a cumplicidade da população carente. Quem mora numa cidade desprovida de bons transportes é induzido a violar uma ordem legal insensível às suas necessidades básicas.

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O professor Jerson Kelman, ex-presidente da Sabesp - Eduardo Anizelli - 30.mar.17/Folhapress

Na ausência disciplinadora das forças da lei e da ordem, cria-se terreno fértil para a expansão urbana desordenada, às vezes em áreas de risco, sujeitas a inundações e deslizamentos, frequentemente sob a tutela das milícias. Sem respeito ao plano urbanístico, se houver, a ocupação obedece à lógica da maximização dos lucros. A consequência é a minimização da segurança e da funcionalidade.

Não há preocupação em construir o arruamento e a drenagem. Os serviços básicos (água, saneamento e eletricidade) são disponibilizados precariamente. São instalações cuja regularização será bem mais custosa do que se tivessem sido instaladas corretamente desde o início.

As novas propriedades não têm RGI (Registro Geral de Imóveis), mas têm donos e são alugadas regularmente. Na ausência do Estado, criam-se cartórios locais e o não cumprimento das regras pactuadas resultam em penalidades violentas; por isso mesmo mais eficazes do que as existentes no mundo legal.

Nós, os protegidos pelas leis, temos duas alternativas. A primeira é persistir apostando que será possível fazer com que o nosso mundo também valha nos locais sobre os quais apenas ouvimos falar. Significa persistir no combate à criminalidade, possivelmente com alguns melhoramentos. Por exemplo, por meio do uso mais frequente de técnicas de investigação do tipo “siga o dinheiro”.

A segunda alternativa inclui o combate à criminalidade; porém, vai além: aproxima os dois mundos —o legal e o real— mexendo simultaneamente nas duas pontas. Significa ter a disposição para substituir leis e normas concebidas para ordenar uma sociedade ideal por novos códigos que resultem em melhor ordenamento da sociedade real, sem a imposição de exigências impossíveis de serem cumpridas.

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