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Gabriel Brasil

Bolsonarismo e Faria Lima: um casamento abusivo

Para não ser enganada de novo, já passou da hora de pedir o divórcio

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Gabriel Brasil

Economista e analista de risco político, é mestre em economia política internacional pela USP

Por algum motivo, Jair Bolsonaro, casado três vezes, parece ter um apreço particular por metáforas envolvendo o matrimônio.

Desde que se tornou candidato e venceu as eleições, estrelou casamentos notórios: alguns não duraram muito, como aquele com a Lava Jatosepultado sem grandes rodeios—, e outros que parecem representar um amor de longa data, como o atual com o centrão. Houve ainda casamentos platônicos, a exemplo da relação com o ex-presidente norte-americano Donald Trump. Uma paixão, no entanto, merece destaque por sua duração improvável —aquela com a Faria Lima, avenida paulistana que concentra boa parte do mercado financeiro do país.

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes (Economia) durante cerimônia no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 29.mar.21/Folhapress

Abençoado por Paulo Guedes, o romance começou às vésperas das eleições, mesmo com os noivos sendo tão diferentes. Bolsonaro, como sabemos, nunca advogou por agendas econômicas liberais. Pelo contrário: como deputado federal, votou contra o Plano Real, contra a privatização das teles, contra o fim do monopólio do petróleo —e assim foi com tantos outros projetos apoiados pela Faria Lima.

Sob inúmeros aspectos, o atual presidente sempre se mostrou um nacional-estatista, sem muita discussão. A Faria Lima, contudo, traumatizada com namoros recentes, precisou de pouco para se convencer da nova postura do candidato a presidente que a chamou para o baile eleitoral —um fiador já bastava. Casaram-se num posto de gasolina.

De lá para cá, o matrimônio desandou —e desandou rápido. Já no seu primeiro ano alguns conflitos surgiram, como quando o presidente se envolveu nas negociações da reforma da Previdência para garantir privilégios para a sua corporação, os militares.

No segundo ano, antes e durante a pandemia de Covid-19, Bolsonaro sabotou múltiplas iniciativas da equipe de Guedes e do próprio Congresso. Desde o começo, priorizou pautas ideológicas em detrimento das prioridades do seu “super-ministro” (sic) —notadamente as reformas tributária e administrativa.

O casamento com a Faria Lima passou a ser marcado por uma rotina recorrente de morde e assopra
—em geral, com Bolsonaro o atacando pela manhã, e Guedes se esforçando para salvá-lo à noite.

Durante o dia, a volatilidade passou a marcar o mercado —até chegar ao ponto em que as manifestações de Bolsonaro (e também de Guedes) passaram a importar cada vez menos.

Sob o ponto de vista teórico, agentes econômicos se orientam em torno das suas expectativas. Estas, por sua vez, originam de evidências mais ou menos concretas, principalmente em torno dos precedentes gerados pelos formuladores de política. No caso da Faria Lima, os sinais da incompatibilidade da sua agenda com o bolsonarismo são estridentes —a despeito da permanência pouco compreensível, do ponto de vista psicológico, de Paulo Guedes.

Em múltiplas ocasiões o ministro caracterizou o governo do qual faz parte como sendo “a união entre o conservadorismo e o liberalismo”. Essa combinação, em si, não é improvável sob o ponto de vista político: é, na verdade, comum em países como os EUA e o Reino Unido.

Ocorre, no entanto, que o bolsonarismo não é um movimento conservador, mas reacionário. Bolsonaro não é um defensor de coisas como as instituições ou as tradições. Embora diga defender a família, parece que o foco da sua defesa é sempre em uma só, a dele próprio. Na completa concepção do termo, o presidente é um notório iliberal. Em boa medida, o seu conservadorismo é também um estelionato.

Depois de tantas traições e humilhações —as mais recentes incluindo a demissão esdrúxula do presidente da Petrobras, por cima do ministro da Economia, e a intervenção na gestão do Banco do Brasil—, fica claro que, entre a agenda da Faria Lima e sua reeleição, o presidente parece não ter dúvidas: só pensa em 2022. O mercado que dance sozinho.

Ao que parece, Guedes também já escolheu o seu par: à luz de todas as evidências, o ministro é hoje muito mais um bolsonarista do que um “Faria Limer”. Em nome dos que assistem aflitos (e são diretamente impactados por este casamento), já passou da hora de a Faria Lima pedir o divórcio —antes que seja enganada mais uma vez.

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