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Angelo Ishi

O outro legado olímpico

Faz sentido em realizar os Jogos sem a confraternização dos fãs de outros países?

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Angelo Ishi

Professor da Faculdade de Sociologia da Universidade Musashi, em Tóquio

Com o revezamento da tocha olímpica em curso, podemos dar como certo que a Olimpíada de Tóquio acontecerá, literalmente, “a qualquer custo”. E que custo! Como bom toquiota (moro aqui há quase 30 anos), é desesperador pensar que parte dos impostos que pago está sendo usada para financiar a Olimpíada mais cara da história.

O investimento valeria a pena se os Jogos deixassem um legado à altura. E o principal legado desta Olimpíada tende a ser o esforço para combater a discriminação de gênero. Em resposta às declarações sexistas do ex-presidente do comitê organizador, Yoshiro Mori, o Japão agiu rápido: escolheu uma mulher (Seiko Hashimoto) para substituí-lo e incluiu várias outras na cúpula. Isso é ótimo. Mas é uma pena que o Japão esteja desperdiçando a oportunidade de deixar um outro legado: aproveitar o evento como alavanca para acelerar a implementação de políticas mais amigáveis em relação aos estrangeiros, tanto os visitantes como os residentes.

O legado olímpico seria um país em que os estrangeiros se sintam menos “lost in translation” e com uma população menos ressabiada em relação a eles. Eu esperava, por exemplo, uma multiplicação das placas em alfabeto e uma corrida aos cursos de inglês e de outras línguas. Também esperava que facilitassem ou isentassem o visto para turistas, a começar pelos brasileiros, já que o Brasil beneficiou o Japão com isenção unilateral.

Na Copa de 2002, cossediada por Japão e Coreia, entrevistei brasileiros que conseguiram acompanhar a fase de grupos na Coreia, mas desistiram de seguir para o Japão, onde a seleção conquistou o penta. Quando perguntei o motivo, eles responderam: “Não deu tempo de tirar o visto”. A Coreia tinha adotado a isenção de vistos, mas o Japão manteve o rigoroso controle de fronteiras.

Já na cidade em que a Inglaterra enfrentou a Argentina, os torcedores encontraram lojas e restaurantes de portas fechadas porque a população se apavorou com o possível vandalismo dos “hooligans”. O pânico foi semeado pela polícia e pela imprensa, que alardearam à exaustão os perigos da “invasão estrangeira”. Passados 19 anos, o pânico agora é que o estrangeiro traga o vírus.

Esta não será a Olimpíada que sonhamos, mas será a Olimpíada dos sonhos para uma ala da população que ainda tem alergia a estrangeiros. Conforme já foi fartamente noticiado, o comitê japonês decidiu anular os ingressos vendidos no exterior, ou seja, somente quem reside no Japão terá o direito de assistir aos Jogos. A imprensa tem destacado o aspecto econômico dessa medida, com ênfase no prejuízo que o Japão terá por barrar o público internacional (além dos 600 mil ingressos já vendidos que precisarão ser ressarcidos, todo o setor turístico, que contava com esses visitantes, ficará no prejuízo).

Entretanto chamo a atenção para um ponto que tem a ver com a essência de uma Olimpíada: faz sentido em realizar Jogos em que não há confraternização entre os fãs de diferentes países? Por mais que a restrição se justifique do ponto de vista sanitário, ela provocará uma situação inédita: nas arquibancadas, só haverá torcedores/espectadores do país-sede. Os atletas japoneses terão um estádio inteiro torcendo a seu favor. E os atletas visitantes, ao receberem sua medalha, não terão nenhum compatriota na arquibancada para aplaudir sua conquista. Se isso é ou não relevante, depende da maneira como cada um de nós encara o significado de uma Olimpíada.

Sim, há estrangeiros residentes no Japão que, em tese, garantiriam a diversidade nas arquibancadas. Mas o fato é que o país tem uma presença mínima de residentes estrangeiros. Estima-se que menos de 3% da população seja não japonesa. E tem até um americano naturalizado japonês, autor do livro “Japanese Only”, levantando polêmica: “Uma Olimpíada só para japoneses? Quem garante que os estrangeiros residentes no Japão terão garantido o seu direito de entrar no estádio?”.

O questionamento dele pareceria absurdo não fosse o fato de que, por conta da pandemia, o Japão foi o único país do G7 a proibir durante meses a reentrada até mesmo dos estrangeiros com visto permanente.

Quando Tóquio conquistou o direito de sediar a Olimpíada, o seu lema era de “omotenashi” —“servir o visitante impecavelmente”. Ao final de tudo, haverá poucos visitantes para servir.

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