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Denizar Vianna Araujo

Acesso à saúde, com mais qualidade e segurança

Brasil não pode retroceder na incorporação de novas tecnologias

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Denizar Vianna Araujo

Professor titular da Faculdade de Ciências Médicas e pró-reitor de Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

Se a pandemia de Covid-19 carrega consigo algum aspecto positivo, este certamente é o de ter transformado a saúde numa preocupação global e em tema central da humanidade. Para nós, que vivemos o dia a dia da área, já são bem conhecidos há tempos os enormes desafios que a contínua ampliação da assistência às pessoas implica. Temos agora a chance de ver muito mais pessoas seriamente empenhadas em equacionar esses muitos e difíceis problemas.

Nessa missão, devemos partir de uma premissa necessária: a qualidade da assistência que conseguiremos prover à população depende do modelo de avaliação que definirá o que deve ou não ser posto à disposição dos pacientes, em quais condições e como. Significa dizer que o atalho mais curto para o erro é imaginar que possamos oferecer tudo a todos e a qualquer custo. O sucesso da expansão do acesso à saúde exige critérios de análise cada vez mais rigorosos.

Saúde envolve escolhas. Diante de restrições orçamentárias cada vez mais desafiadoras, tanto no SUS quanto no sistema suplementar, é imperativo buscar oferecer aos pacientes os tratamentos que sejam capazes de produzir melhores desfechos clínicos, com mais segurança e qualidade, uso mais racional dos recursos e orçamentos mais factíveis. O caminho para tanto envolve a síntese e a análise crítica da literatura técnica, a análise de custo-efetividade e a avaliação de impacto orçamentário. Isso tem nome: a Avaliação de Tecnologias em Saúde, a chamada ATS.

A ATS é o estado da arte em qualquer parte do mundo em termos de análise e escolha do que deve ser oferecido à população na forma de insumos e procedimentos de saúde. No Brasil, há duas instâncias nas quais essa avaliação é realizada: a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias), no caso de procedimentos incorporados para serem oferecidos pelos SUS, e o Cosaúde, o Comitê Permanente de Regulação da Atenção à Saúde da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que define as coberturas obrigatórias impostas às operadoras de planos de saúde.

Essa é a boa regra, que poderia ser aperfeiçoada se adotássemos no país uma instância única, independente, na forma de uma agência unificada robusta, ainda mais bem dotada e equipada, para fazer as avaliações tanto para o sistema público quanto para o suplementar. Essa é uma boa meta para quem se dedica seriamente a melhorar o acesso dos brasileiros à saúde, de forma equânime.

No entanto, estamos neste momento caminhando em sentido oposto: corremos o risco de regredir nos avanços obtidos com esse importante processo de avaliação de tecnologias, procedimentos e medicamentos de saúde. Sem ele, também colocamos em xeque a segurança dos pacientes e a sustentabilidade econômico-financeira do sistema nacional de saúde. Vamos entender por quê.

Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 6.330/2019, que estabelece que medicamentos oncológicos de uso oral terão cobertura automática pelos planos de saúde tão logo sejam aprovados na Anvisa. Esta agência atesta as condições de eficácia e segurança para comercialização do produto —em muitos casos, após apenas testes de fase 2, ou seja, parciais, não conclusivos. A Anvisa não mede, portanto, ganhos terapêuticos, não avalia, em suma, se determinado medicamento compensa —em termos de resultados e custos— ou não em relação a alternativas já disponíveis no mercado. Esse papel, no caso da saúde suplementar, cabe exclusivamente ao Cosaúde na ANS, em linha com as melhores práticas globais.

A justificativa dos que defendem o projeto de lei que revoga prerrogativas hoje garantidas à ANS é que o processo de atualização do rol de procedimentos cobertos pelos planos de saúde é muito lento, pois leva em média dois anos. Têm razão. Mas a resposta a esse problema é buscar formas de dar maior celeridade à análise e não acabar com ela, como estabelece o texto em discussão na Câmara. A solução é, sim, mais rapidez, mas sem perder a necessária segurança que garante a qualidade do atendimento ao paciente, com base nos melhores parâmetros da ciência mundial.

A ATS é uma conquista civilizatória dos sistemas de saúde. Em todo o mundo. Todos os sistemas de saúde, dos mais aos menos avançados, a adotam, alguns com critérios muito mais rigorosos que os brasileiros —como é o caso do sistema britânico, um paradigma para o SUS. Não podemos, portanto, andar para trás nisso, uma vez que, se aprovada, a incorporação automática de antineoplásicos orais tenderá a criar precedente para todos os demais medicamentos.

Mas podemos, sim, avançar bem mais no nosso modelo de incorporação de novos procedimentos em saúde. Como? É consenso que o processo precisa ser acelerado. Esse ponto deve estar resguardado numa proposta alternativa que substitua o projeto de lei hoje na mesa. Considero os modelos e os prazos adotados na Conitec —180 dias para análise, com até mais 90 dias de prorrogação, mas sempre sujeito à ATS — como o melhor parâmetro a ser replicado.

Outro aspecto diz respeito à adoção de novos modelos de incorporação e aquisição de tecnologias em saúde em que os riscos sejam mais bem divididos. Hoje, custos e riscos são suportados unicamente pelos pagadores —ou seja, o cidadão que recolhe tributos, no caso do SUS, e os beneficiários de planos de saúde, no sistema suplementar. Durante a gestão do ministro Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, tentamos levar adiante um novo modelo de financiamento baseado no compartilhamento de riscos com a indústria farmacêutica. A experiência é embrionária e deveria ser encarada com mais seriedade como opção num cenário de custos crescentes na saúde e limitações cada vez mais intensas nos orçamentos públicos e privados.

O que é fora de questão é que o Brasil precisa andar para frente e não retroceder em termos de incorporação de novas tecnologias em saúde. Nosso sistema é bom, alinhado às melhores práticas globais. A discussão do projeto de lei em tramitação no Congresso abre a possibilidade de aperfeiçoá-lo ainda mais. O que não podemos é abrir mão da segurança que garante a qualidade do acesso dos brasileiros à saúde, algo que só os processos de ATS proporcionam aqui e no mundo todo.

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