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Douglas Crispim

Preconceito etário e Covid-19

Negligência com idosos vai da admissão hospitalar à prioridade em leitos

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Douglas Crispim

Médico geriatra e paliativista, é presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP)

Em julho de 2020, um colega me perguntou se a idade poderia ser considerada um fator decisivo para não indicar UTI a uma paciente. Na ocasião, não havia escassez de recursos, e a paciente era previamente saudável. Na mesma época, grupos de WhatsApp repetiam que jovens não precisavam se preocupar com a Covid-19. O que havia de comum nessas situações? Mais discriminação com idosos ou apenas a de sempre, mais visível agora?

Enquanto jovens subestimavam a pandemia, critérios ultrassimplificados de prognóstico se direcionavam para o mais singelo de todos e também mais perigoso: a idade.

Em 2020, dezenas de pesquisas estudaram as formas em que o preconceito etário (ageísmo ou etarismo) era manifestado na Covid-19. Os resultados foram surpreendentes. Nos Estados Unidos, uma hashtag chamou atenção ao se referir ao vírus como #BoomerRemover (“removedor de idosos”), sugerindo que a doença só atingia idosos. Um “trial” com 18.128 tweets sobre a Covid-19 demonstrou, em amostragem, que 40% deles tinha conteúdo etarista de forma explícita.

Os artigos sobre imunologia e fisiopatologia da Covid-19 em idosos sugerem que eles necessitam de mais atenção aos detalhes, ajustes finos e inclusão do cuidado geriátrico. Um idoso grave, que não recebe tratamento inicial correto, hidratação e nutrição adequada terá um prognóstico muito pior que um jovem. A negligência com os mais velhos pode ocorrer de formas sutis, desde sua admissão num hospital até a prioridade que receberá ao ocupar um leito ou equipamento. Estamos mesmo dando as condições adequadas de tratamento?

Na escassez de recursos, as pessoas serão classificadas pela maior chance de sobreviver —porém, não se deve usar a idade isoladamente.

Na Itália, sociedades de UTI incluíram a idade, isoladamente, como critério, mas outras associações médicas exigiram a inclusão de doenças prévias e a fragilidade como mais importantes. Matteo Cesari afirmou que devemos evitar o “vale tudo no amor e na guerra”.

Ao ouvir que a decisão por utilizar ou não ventilação mecânica para um paciente está baseada na sua data de nascimento, percebemos que a medicina moderna está em crise. O mais importante para avaliar a indicação dos tratamentos é como a pessoa era antes. Se tinha doenças graves, terminais ou muito frágil; isso vale bem mais que a sua idade.

Para Sarah H. Kagan, “o etarismo é talvez a última forma de discriminação socialmente aceita”. Para ele, normalmente surge de forma velada, insidiosa e com “alegações de melhores interesses”.

Estamos em 2021! Instituições de longa permanência, não priorizadas na pandemia, protagonizaram uma mortandade jamais vista. Esses mesmos pacientes tiveram menos acesso aos hospitais. Aronson questionou em 2020: “Por que estamos tranquilos com as mortes dos idosos?” As mortes dos jovens geraram histórias; as dos idosos, números.

Os estudos mostram que negar acesso a procedimentos e cuidados em saúde é a principal forma de manifestação do etarismo nos tempos atuais, seguido da relativização da importância de suas vidas.

Um estudo realizado em oito países mostrou que estudantes e médicos tomam decisões que limitam o acesso dos pacientes a determinados tratamentos baseados apenas em sua idade e não em necessidades clínicas. Muitos deles não percebem.

Para a Organização Mundial da Saúde, “uma sociedade é medida pela forma como cuida dos seus cidadãos mais velhos”. Importantes sociedades médicas já alertaram sobre os riscos do etarismo. Não podemos aceitar a limitação de suporte baseada na idade de alguém sem que essa pessoa tenha critérios claros de terminalidade da vida, tal como definido pelos códigos de ética médica e pelas resoluções do Conselho Federal de Medicina.

Situações duvidosas devem ter avaliação especializada de geriatras ou paliativistas. Culpar os idosos pela pandemia é agir de forma negacionista e contribuir para a crise sanitária. Culpar e punir os mesmos é muito pior. Como com qualquer preconceito, devemos combater o etarismo. Vidas idosas importam!

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