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Racismo e reconhecimento fotográfico

Brasil pode preencher vácuo legislativo que tem levado inocentes à prisão

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As prisões injustas por erros de reconhecimento têm se tornado tópico fixo na crônica policial brasileira, com novos casos a cada semana. Na posição de suspeitos, jovens negros que, ao lado de suas famílias, têm de lidar com prejuízos pessoais incalculáveis, infligidos com desconcertante anuência do sistema de Justiça.

A recorrência dos erros escancara o racismo nas práticas do Judiciário e torna inevitável imaginar por quanto tempo tais injustiças encontraram no silêncio das instituições um fator de autoconservação. Especificamente sobre o reconhecimento fotográfico, não se sabe exatamente qual o impacto das tecnologias de produção e difusão de imagens no aumento da escala do problema; contudo, mesmo antes do advento do smartphone, muitos podem ter tido as vidas destruídas até que o tema chegasse ao debate público.

Tiago Gomes teve a foto colocada em álbum de suspeitos e passou a ser reconhecido de maneira incorreta em vários processos - Tércio Teixeira - 21.dez.20/Folhapress

A tecnologia criou novas condições de replicação de preconceitos sociais muito antigos. Nos EUA, um estudo do professor de direito Brandon Garrett (Universidade de Duke) sobre condenações de inocentes revisadas a partir de provas de DNA, analisou 250 revisões criminais e chegou a 190 condenações causadas por reconhecimentos falhos. Em 93 delas (49%), quem reconheceu era de raça diferente de quem foi reconhecido. Em 71 casos (38%), homens negros foram reconhecidos por mulheres brancas.

Outro estudo, uma revisão de literatura baseada em 39 pesquisas feitas também nos EUA pelos acadêmicos Christian A. Meissner e John C. Brigham, concluiu que as possibilidades de equívocos são 56% maiores quando reconhecedor e reconhecido são de grupos raciais diferentes.

No Brasil, as frequentes injustiças fizeram pairar desconfianças sobre o reconhecimento como método de produção de prova, especialmente o fotográfico. A psicologia do testemunho, no entanto, revela que não é necessariamente a mídia —isto é, a fotografia— a causa dos reconhecimentos falhos e sim os procedimentos adotados ou a falta deles. Se feitos corretamente, tais procedimentos tendem a reduzir drasticamente a margem de erro do funcionamento da memória —que pode ser sugestionada e involuntariamente produzir uma recordação falsa.

Inocente preso por 15 anos, Cícero José de Melo, 48, posa diante da estátua de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte (CE), um dos primeiros lugares que visitou ao reconquistar a liberdade - 1.mai.2021/Arquivo Pessoal

A memória humana, como uma cena de crime, requer cuidados porque pode ter seus conteúdos permanentemente alterados por procedimentos mal feitos. Um dos mais comuns (e o que tem mais riscos de levar um inocente à prisão) é o "show up" —quando um único suspeito é apresentado, pessoalmente ou por foto, distorcendo a memória da testemunha ou vítima a partir desse sugestionamento.

O reconhecimento de pessoas é regulado pelo artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), de 1941, refletindo o descompasso com avanços científicos e práticas internacionais recentes. Esse vácuo legislativo encontra a possibilidade de começar a ser preenchido. Recentemente, o Senado votou o projeto de lei 676/2021, que altera o CPP, aprovando também especificações sobre o reconhecimento fotográfico.

Escrito com a colaboração de especialistas, o texto enviado à Câmara proíbe o "show up" e a apresentação de fotos que se refiram somente a pessoas suspeitas, integrantes de álbuns suspeitos e extraídas de redes sociais. A proposta ainda prevê que seja registrada a raça autodeclarada de quem reconhece e da pessoa eventualmente reconhecida. As modificações visam trazer maior rigor ao reconhecimento, diminuindo o risco de contaminação da memória.

A ciência tem demonstrado que o reconhecimento realizado por procedimentos padronizados é mais confiável, embora o funcionamento regular da memória não deixe de incorporar uma margem de erro. Exatamente por essa razão, deve-se reconhecer o avanço do PL 676/2021, ao determinar que o reconhecimento não corroborado por elementos probatórios independentes é insuficiente para a condenação, bem como para a prisão.

Se for aprovado pelos deputados, o Brasil dará um passo que pode reduzir o número de prisões de inocentes, evitando, assim, a normalização de um problema cuja extensão concreta é desconhecida, mas sabidamente monumental.

Sheila de Carvalho
Advogada e membro da Uneafro Brasil e Coalizão Negra por Direitos

Janaína Matida
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Alberto Hurtado (Chile)

William Cecconello
Professor de psicologia na Faculdade Imed

Hugo Leonardo
Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

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