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Ademar Borges e João Gabriel Madeira Pontes

Julgamento de civis pela Justiça Militar é inconstitucional

Valores da caserna não valem mais que os direitos fundamentais dos cidadãos

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Ademar Borges

Doutor em direito público (Uerj), é professor de direito constitucional do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa)

João Gabriel Madeira Pontes

Mestre em direito público (Uerj)

Está na pauta do Supremo Tribunal Federal o julgamento da ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 289. Ajuizada pela Procuradoria-Geral da República em 2013, a ação pretende que o STF reconheça a inconstitucionalidade do julgamento de civis pela Justiça Militar, nas hipóteses autorizadas pelo Código Penal Militar, de 1969.

Sem dúvida, a ADPF se volta contra um dos principais entulhos autoritários que a democracia brasileira herdou dos tempos da ditadura. Criada para processar e julgar membros das Forças Armadas por atos praticados no exercício de funções tipicamente militares, a Justiça Militar tem perfil muito específico, ligado à manutenção da hierarquia e da disciplina na caserna. Não há, portanto, nenhuma razão constitucional legítima para que, em tempos de paz, esse ramo especializado do Poder Judiciário possa julgar civis. Ainda assim, como apurou a jornalista Natalia Viana em seu precioso livro "Dano colateral", centenas de civis são detidos, processados, julgados e condenados pela Justiça Militar, na maioria das vezes por supostos crimes de desacato, desobediência ou resistência.

Não bastasse, o julgamento de civis pela Justiça Militar viola diretamente garantias fundamentais previstas pela Constituição de 1988, sobretudo a imparcialidade judicial. Isso porque os magistrados desse ramo do Poder Judiciário estão mais familiarizados com um sistema de valores que confere muita importância à preservação dos interesses da caserna e pouca atenção aos direitos dos civis investigados e processados.

O próprio desenho institucional da Justiça Militar favorece o corporativismo e impede que os civis sejam julgados de maneira isenta. Na fase investigatória, os cidadãos se sujeitam a inquérito policial-militar, conduzido por oficial sem formação jurídica, que tende a atuar para proteger os princípios da hierarquia e da disciplina. Já na fase processual, os civis são julgados, em grau recursal, pelo Superior Tribunal Militar, composto por 15 ministros vitalícios, sendo 10 deles oficiais-generais na ativa, que tampouco precisam ter formação em direito. Conforme apontam os estudos apresentados ao STF, tais oficiais, em suas decisões, também costumam favorecer a lógica do estatuto das Forças Armadas, a que estão submetidos por lei.

Não por outro motivo, a jurisprudência internacional sobre direitos humanos é unânime ao afirmar a ilegitimidade do julgamento de civis por juízes ou tribunais militares. E é claro que tal orientação deve ser levada a sério pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 289.

Primeiro, porque as normas jurídicas brasileiras devem ser interpretadas à luz das contribuições e dos precedentes firmados pelas cortes internacionais. Segundo, porque os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem força superior à de leis ordinárias, como o Código Penal Militar —que, por isso, deve ser compatível não só com a Constituição de 1988, mas também com o Pacto de San José da Costa Rica, cujo artigo 8.1, de acordo com diversos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não admite o julgamento de civis por militares.

Como se vê, são muitas as razões jurídicas pelas quais se deve reconhecer a inconstitucionalidade do julgamento de civis pela Justiça Militar. Em tempos de intensa e preocupante militarização da política e da sociedade brasileiras, é necessário deixar claro que os valores da caserna não valem mais que os direitos fundamentais dos cidadãos. Está nas mãos do STF, e de mais ninguém, afastar da vida nacional essa perigosa herança autoritária.

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