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Deborah Bizarria e Magno Karl

Pelo amém e pelo axé

Avanço da intolerância religiosa mostra que nossa cordialidade é só caricatura

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Deborah Bizarria

Economista, é coordenadora de Políticas Públicas do Livres e evangélica liberal

Magno Karl

Cientista político e diretor-executivo do Livres

Se a preservação da liberdade individual é o princípio fundamental de uma visão de mundo liberal, a tolerância a crenças diferentes é parte da expressão prática desses princípios em uma comunidade. A história intelectual das democracias liberais é a história da busca pela autonomia do indivíduo e pela independência de consciências, isto é, pela criação da esfera privada do cidadão. Mas e se o seu vizinho acende velas para o diabo?

No Brasil do século 20, o sincretismo religioso se firmou como um arranjo social que garantia, muitas vezes ao mesmo tempo, a manifestação de crenças em deuses que atenderiam aos nossos chamados, sejam vindos dos batuques do atabaque ou dos coros nas catedrais. As fronteiras sempre nos pareceram borradas. Dia 20 de janeiro é Dia de São Sebastião e de Oxóssi. Já 23 de abril é Dia de São Jorge e de Ogum. O brasileiro médio deseja feliz Natal a judeus e muçulmanos, sem discriminação, com a melhor das intenções.

Mas nossa cordialidade é uma caricatura. Apesar das dificuldades de se coletar dados robustos sobre o tema, "Estado Laico: Intolerância e Diversidade Religiosa no Brasil", uma publicação do governo federal, indica quase 1.500 ocorrências de violência religiosa apenas num único ano (2016). Ele aponta também que, apesar de agruparem apenas 2% dos brasileiros, as religiões de matriz afro-brasileira reúnem quase metade das vítimas dessas ocorrências.

Em algumas localidades, a situação é ainda pior: números do Distrito Federal divulgados pela ​Decrin (delegacia especializada em repressão a crimes por discriminação religiosa) revelam que quase 60% das denúncias investigadas pela delegacia tem como vítimas praticantes de religiões de matriz afro-brasileiras, que reúnem 0,2% da população do DF.

E os eventos se multiplicam. No ano passado, o Ministério Público de São Paulo denunciou uma mãe à Justiça, por lesão corporal e violência doméstica agravada, por permitir que sua filha participasse de um rito de iniciação no candomblé. Recentemente, o caso de uma menina de 11 anos agredida por trajar roupas candomblecistas também ganhou atenção nos jornais. E, mesmo nos morros e favelas do Rio de Janeiro, a influência de pastores sobre traficantes de drogas tem levado a casos de expulsão de religiosos e fechamento de terreiros.

Enquanto pastores televisivos doutrinam fiéis na crença de que seus vizinhos não reverenciam Exu, o guardião dos caminhos, mas o diabo cristão, a personificação de todo o mal, os cristãos também são agredidos. Ironicamente, no Brasil, os evangélicos são o segundo grupo mais vitimado pela discriminação religiosa.

O desprezo pela tolerância socializa preconceitos e faz com que o espaço público fique mais pobre. No último Carnaval antes da pandemia, a Acadêmicos do Grande Rio conquistou o vice-campeonato com um samba-enredo que propunha: "Eu respeito o seu amém / Você respeita o meu axé". Que o lema dos compositores duquecaxienses leve o princípio da tolerância e o espírito da coexistência a todos os campos e a todos os cantos do país. É ano eleitoral, e nós vamos precisar.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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