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Charles Mady

O Incor e a USP resistem, mas até quando?

Interesses privados se infiltram cada vez mais nas universidades públicas

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Charles Mady

Médico e professor associado do Instituto do Coração (Incor) e da Faculdade de Medicina da USP

O Incor —Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo— serve à sociedade há 45 anos, dentro do possível, de forma exemplar. Apesar das dificuldades políticas e econômicas, manteve alto nível acadêmico graças a seus recursos humanos, com invejável espírito institucional. É um grande patrimônio moral. Em certas ocasiões esse espírito se abalou; houve descrédito e desesperança, mas a formação institucional sólida manteve a excelência do serviço.

Nasceu desacreditado, pois julgavam que se tratava de um empreendimento muito grande para uma só especialidade. Sob o comando de Euryclides de Jesus Zerbini e Luiz Venère Decourt, catedráticos da USP e fundadores do Incor, fez-se um trabalho de construção universitária único em nossa história. Reuniram recursos humanos de alto padrão —no início, por problemas econômicos, em número limitado. Críticos nos chamaram de "Instituto do Pericárdio", que é a membrana que reveste o coração, pois não teríamos condições de tratar o restante. Como visionários, e conscientes da coisa pública, colocaram o projeto como objetivo de vida. Essa cultura era presente nos alunos e professores da USP. Receberam a formação profissional e, sobretudo, humana, sem as quais não teriam realizado o projeto.

Cirurgiões em ação no Instituto do Coração (Incor), em São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress

Esses professores criaram uma fundação para obter os fundos necessários. Era a única forma de levar o Incor adiante. Houve problemas sérios, todos resolvidos de forma legal e construtiva. O toque de genialidade foi um organograma de alto padrão, multiprofissional, com responsabilidades para cada grupo desenvolver as atividades exigidas pela USP e pelo Hospital das Clínicas (HC). Havia talentos em todos os setores. O Incor nasceu e cresceu graças à qualidade de seus recursos humanos. Atingimos resultados excelentes. O ser humano, não equipamentos de última geração, foi o fator determinante do sucesso.

Os selos USP e HC foram essenciais para o bom resultado. Sem essa mentalidade acadêmica, provavelmente o resultado seria outro. É o exemplo do que uma universidade pública pode realizar. Não adianta apenas o poder econômico, hoje cada vez mais infiltrado na saúde e na educação. A credibilidade leva tempo para surgir e não tem preço. Apesar do sucateamento que criminosamente nos atingiu, esse perfil nos manteve em pé.

Mas interesses privados se infiltram cada vez mais nas universidades públicas, criando conflitos de interesses. Empresas privadas disputam profissionais titulados, pois sabem que tipo de retorno terão. Essa mudança de cultura é perigosa para a sobrevivência das academias. A evasão de cérebros para o exterior complica ainda mais essa situação maligna. Para onde caminhamos? Qual o tempo que os estrelados terão para se dedicar à vida acadêmica?

A USP resiste, mas por quanto tempo? Mudanças de critérios de escolha, além de regras rígidas de desempenho profissional, devem ser seriamente discutidas. A evasão de cérebros tende a se agravar. Até quando? É o privado utilizando o público para o sucesso de suas empresas. Que dão estas de retorno à população? A pandemia mostrou o quanto o SUS é importante para o povo. O HC, mesmo pobre, deu exemplo de eficiência pelo trabalho dedicado de profissionais institucionais.

Empresas privadas tiveram lucros históricos com a tempestade perfeita criada pelo vírus e pelos políticos. Estes representam o que há de pior na sociedade, como demonstraram na crise. Seus perfis são histórica e culturalmente corruptos. Mas nada aprenderam. O preço pago pela sociedade, imenso, incalculável, continua a ser cobrado. Temo que o espírito institucional universitário também se perca com o tempo.

Já a USP e outras universidades públicas mostraram sua força com a quantidade e qualidade de informações científicas divulgadas. Os resultados são impressionantes. Cito o Incor: em 1978 e 1979, tivemos três publicações em revistas científicas internacionais. Em 2021 foram 617, aumentando ano a ano. Isso ilustra a cultura que a USP tenta incutir. Apesar de tudo, mantém a excelência.

Até quando? Temo que a erosão desses princípios abale o patrimônio intelectual que é a USP e também seus pares, e toda a estrutura de saúde e educação que representam sofra prejuízos irreversíveis.

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