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Luciana Temer

Dois vídeos escancararam a tragédia da violência sexual no país

Brasil precisa falar de estupro, discutir e construir formas de estancá-lo

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Luciana Temer

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta

Duas gravações de vídeo chocaram o país no último mês. A primeira, divulgada pelo The Intercept Brasil, de uma audiência em Santa Catarina na qual uma juíza e uma promotora coagem uma menina de 11 anos grávida (portanto, de acordo com a nossa legislação, estuprada) a não fazer a interrupção de gravidez à qual tinha direito legal. Logo, se a menina tinha direito legal, a atitude da juíza e da promotora era ilegal.

No segundo vídeo, um médico anestesista estupra uma mulher que está dando à luz. Sim, ele coloca o pênis na boca da mulher depois de tê-la sedado para além do necessário. Esta segunda gravação é feita por enfermeiras que desconfiavam do comportamento do médico durante as cirurgias.

Mulheres durante ato contra violência sexual em frente a hospital em que anestesista estuprou uma paciente durante o parto - Eduardo Anizelli/Folhapress

Graças à tecnologia, duas situações gravíssimas foram expostas, e a sociedade, indignada, foi obrigada a olhar e discutir a violência sexual. Isso me lembra da frase atribuída ao filósofo chinês Confúcio: "uma imagem vale mais do que mil palavras". Eu acrescentaria, "ou que mil dados". Sim, porque nos chocamos com as imagens, mas parece que não com os dados. Explico.

Acabou de ser lançado o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, com dados de violência no país. Um trabalho primoroso, que vem sendo feito desde 2007 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com toda dificuldade que implica o levantamento e a análise de dados.

Então, vamos às últimas notícias sobre violência sexual: 61,3% de todos os estupros registrados foram contra meninas de menos de 13 anos (em 2019, este número era 53,8%; em 2020, 57,9%; e, em 2021, 58,8%).

Se considerarmos o estupro de vulnerável, caracterizado não só pela idade da vítima (menor de 14 anos), mas também pela condição de deficiência ou alguma outra condição temporária (como estar sedada) que impeça o livre consentimento, este percentual sobe para 75,5% dos registros de estupro.

Outro dado importante refere-se a gravidez na adolescência. Segundo dados do DataSUS/Sinasc, em 2020 nasceram 419.750 crianças filhos de mães entre 10 e 19 anos. Apesar de o Brasil registrar queda de 37,2% no número de adolescentes grávidas nos últimos 20 anos, essa diminuição foi maior entre meninas de 15 a 19 anos (40,7% de queda), do que entre meninas de 10 a 14 anos (26% de queda), o que talvez converse com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre violência sexual.

Cerca 'de 20 mil meninas com menos de 14 anos deram à luz no Brasil em 2020 (sem contar o número de meninas que quiseram e conseguiram fazer aborto legal e, portanto, não entram nesta estatística).

Então, o caso da menina de Santa Catarina, infelizmente, não é uma exceção. São milhares de meninas estupradas com menos de 13 anos no país, mais de quatro por hora e, claro, muitas delas engravidam.

Da mesma forma, o caso revelado pelo segundo vídeo, que parece um filme de terror, não é incomum, se olharmos para os dados existentes sobre violência sexual no sistema de saúde.

Matéria publicada pela jornalista Bruna Lara no The Intercept Brasil mostra que, de 2014 a 2019, forma registrados 1.734 casos de violência sexual em estabelecimentos de saúde, dos quais 1.239 casos de estupro. Esses dados foram fornecidos pelas Secretarias de Segurança Pública de nove Estados; faltam, portanto, informações dos demais para termos uma noção mais real desse quadro de violência.

As imagens, os casos individuais e seus personagens, claramente, têm o poder de gerar uma indignação social que os dados frios não têm. A verdade, contudo, é que amanhã outro absurdo acontece, e o assunto muda. Não vamos deixar nossa indignação passar.

Os dados estão aí, para quem realmente quiser ver e enfrentar com inteligência e racionalidade essas questões. O Brasil precisa falar de violência sexual, discutir e construir formas de estancá-la, a começar por onde ela é preponderante: na infância e adolescência. #AGORAVCSABE.


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