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José Vicente

Cotas para negros é ação civilizatória

Modelo nos libertou do medo de encarar a realidade e do estado de fuga permanente

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José Vicente

Advogado, sociólogo e doutor em educação, é fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e membro do Conselho Editorial da Folha

Primeiro com a Constituição de 1824, que reconhecia os direitos civis e a liberdade dos indivíduos enquanto mantinha a escravidão, e depois com a Carta de 1934, que inscreveu a eugenia como princípio e objetivo da educação nacional, a República brasileira, construída sob baionetas e sem escolas, sem povo e sobre os escombros da escravidão, até aqui tornou quimera seu pressuposto de coisa de todos e utopia seus princípios angulares de cidadania e dignidade da pessoa humana.

Com a abolição da escravidão sem reparação ou indenização, o impedimento do voto aos analfabetos, a exigência de rendas para candidaturas políticas, a substituição da mão de obra pelo imigrante branco e a criminalização da vadiagem e da mendicância, o país primeiramente expulsou os negros para fora do mercado, para fora da vida pública e para as favelas —depois, confinou os restantes nas masmorras prisionais. Com o mito da democracia racial extinguiu a raça, congelou o racismo e forjou as brutais exclusões, econômicas e de oportunidades, como fruto de uma desigualdade social a ser superada com as políticas universais, devendo o Estado e todos permanecerem neutros e conformados, esperando o bolo crescer.

O apresentador do 'Negros Em Foco', José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares
O apresentador do "Negros Em Foco" (TV Cultura), José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares - Divulgação

Tudo isso tornou inalcançável e irrealizável um Estado democrático capaz de construir uma sociedade igualitária, fraterna, pluralista e sem preconceitos, resultando daí a construção de um país de separados e desiguais por conta da cor, por conta da raça.

Foi com as cotas para negros nas universidades públicas, privadas e no serviço público federal que o Brasil construiu um novo paradigma e, decisivamente, iniciou o verdadeiro e genuíno processo de finalização da abolição e os primórdios da construção de uma nação de iguais através do acesso plural, diverso, igualitário e democrático ao ensino superior e aos postos de trabalho prestigiados do Estado.

Com as cotas, o país se libertou dos seus negacionismo da raça como fator de discriminação, distinção e limitador da competição igualitária e dos mitos fantasiosos de que a mistura racial e a convivência pacifica eram neutralizadores naturais e eficientes da hierarquização, segregação e desigualdade social racial.

Com as cotas, negros e brancos sentaram juntos pela primeira vez em profusão nos bancos universitários, nos ambientes corporativos prestigiados e nas repartições públicas. Compartilharam histórias de vida, sonhos e utopias, angústias e entusiasmos e criaram espaços de interação, convivência e construção coletiva de projetos de vida e de futuro. Suas presenças forçaram os ambientes a reformularem seus conceitos, revisitarem seus olhares, abordagens e suas práticas e construírem meios e mecanismos para adaptarem-se à nova realidade.

As cotas nos libertaram do medo de encarar a realidade e do estado de fuga permanente, onde ambiguidade e dissimulação limitavam nosso interesse para conhecer e desconstruir o peso da raça como elemento injustificado de exclusão, desigualdade e segregação. Permitiu-nos descobri-la como fator integrador e potência de criação de competividade e valor para produzir mais e melhor de forma coesa, harmoniosa e realizadora.

Demonstrou a todos que raça não é nosso problema; é nossa solução. E poderá, a partir da experiência vitoriosa das cotas, nos catapultar para um novo e auspicioso processo civilizatório. Um país de diversos e de iguais, onde o fator decisivo será o caráter, o talento, o esforço, o merecimento —nunca a cor da pele.

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