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Daniel Bin

Contramovimentos à marcha autoritária

Frações sociais oprimidas parecem erguer barreiras

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Daniel Bin

Doutor em sociologia, é professor da Universidade de Brasília (UnB) e autor de ‘A Superestrutura da Dívida’ (ed. Alameda)

Em outubro completam-se 100 anos da Marcha sobre Roma, quando Benito Mussolini tomou o posto de primeiro-ministro da Itália. A despeito dos riscos da comparação histórica, a efeméride inspira reflexões.

Ações de amedrontamento, como qualquer relação social, evoluem conforme o contexto. Se antes chefes políticos ou militares empregaram armas em seus empreendimentos autoritários, hoje, cientes de que seus interlocutores sabem que eles seguem armados, um tuíte de general ou teste de urna eletrônica pode servir a intentos golpistas. Já tropas civis bolsonaristas ameaçam adversários em variações —na forma ou escala de violência— contemporâneas daquilo que faziam os fascistas do passado.

Jair Bolsonaro não marchou sobre Brasília, tendo sido eleito conforme o figurino democrático burguês. Ainda assim, debate-se sobre ser o seu governo fascista ou não. Entendo que (ainda) não é, pois não basta um punhado de neofascistas no aparato estatal para dar-lhe essa definição. No entanto, cabe salientar que o acesso do fascismo original ao poder não foi demorado. Entre o fim da Primeira Guerra Mundial, cuja sobra de contingente humano serviu de base para os "Fasci Italiani di Combattimento", e a Marcha sobre Roma decorreram apenas quatro anos. Isso deveria preocupar quem diz acreditar que "as instituições estão funcionando". Não há institucionalidade capaz de sustentar por muito tempo como não fascista um Estado liderado por fascistas.

Por mais que sejam os movimentos de longa duração a formatar as sociedades, a nossa curta existência biológica não nos deixa ignorar que em breves períodos pode-se fazer muita coisa, estragos principalmente. O presidente empossado com o golpe de 2016 fez alguns via reforma trabalhista e o atual, na proteção ambiental. A lista é longa, mas não o suficiente para desencorajar Bolsonaro a querer um segundo mandato. Cabe aqui sublinhar que o primeiro não foi um acidente da política brasileira, cuja história é mais bolsonarista do que democrata.

Sublinhe-se que não é bolsonarista a sociedade brasileira, mas sim os seus estratos superiores de renda e propriedade. Quando tratamos de classe, mas também de raça ou de gênero, vemos que têm sido os mais pobres, negros, indígenas e mulheres as principais barreiras de contenção frente ao bolsonarismo.
Serão as frações sociais oprimidas que enviarão o atual presidente ao lugar de prestar contas pelas atrocidades que marcaram a sua trágica passagem pelo governo.


Tragédia essa sintetizada na forma de lidar com uma pandemia que tantas vidas ceifou e tantas marcas deixou. Mas é uma tragédia que poderia ter sido ainda mais mortífera se não fosse o "contramovimento protetor" de que, segundo Karl Polanyi, uma sociedade é capaz quando se depara com ameaças aos seus "interesses… vitais". Na ausência dessa reação, teriam sido privados, por exemplo, de auxílios e de vacinas, muitos outros além daqueles a quem o atual governo brasileiro conseguiu negar tais direitos.

Essa capacidade de autoproteção possibilita algum otimismo, assim como é possível manter as esperanças dadas pela percepção de que a eleição de 2022 é mais uma batalha na velha luta de classes. Nela residem chances de, já na primeira volta, retardar-se a marcha do autoritarismo de que tanto dependem as classes dominantes.

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