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Rodrigo Coppe Caldeira

'A igreja sou eu': o reacionarismo católico 2.0

Cenas lamentáveis em Aparecida são apenas a ponta do iceberg

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Rodrigo Coppe Caldeira

Historiador e professor da PUC Minas

Diz a lenda que o papa Pio 9 (1792-1878), fazendo eco ao rei Luís 14 (1638-1715) e sua célebre frase "O Estado sou eu", teria afirmado "A Igreja sou eu" —visando apontar para a infalibilidade papal, tornada dogma em 1870.

No contexto em que a Igreja Católica lutava contra um mundo que se desintegrava, a instituição buscava se firmar com o fortalecimento da autoridade. Como os fatos nada podem frente às crenças e desejos pessoais, a infalibilidade parece ter viralizado.

Presenciamos atualmente a afirmação de um tipo de sujeito que não se abre a qualquer instância além dele mesmo. É um entusiasta de si e crente em sua missão de salvar, redimir e libertar aqueles que permaneceriam no erro. Os algoritmos ditam o ritmo de seu engajamento, que caminha sob o signo de um pretenso eu soberano, que tem certeza de si e do caminho que todos devem seguir.

Católicos bolsonaristas encurralam jovem de vermelho ao lado da basílica de Aparecida - Reprodução

Com a expansão de uma direta radical e extrema que se alimentam do descontentamento das massas que não se veem representadas pelos discursos da elite cultural, a religião passa a ter um novo papel. Pululam grupos religiosos afinados com sua imagética e ideais.

No catolicismo não é diferente. Movimentam-se nas redes visando influenciar os católicos brasileiros em suas escolhas políticas e eleitorais. Chocam-se diretamente com a hierarquia institucional, que teria se vendido ao "globalismo". Um papa Francisco "comunista" é a imagem mais corriqueira espalhada por eles nas redes. Figura usual para atacar a Igreja, que teria se perdido para as hostes vermelhas ao buscar se atualizar pastoralmente a partir da década de 1960 frente a um mundo de rápidas mudanças.

Falam e agem em nome da instituição como se a representassem frente a todos os demais fiéis. A partir de seu trono magisterial imaginário, desencadeiam processos inquisitoriais, proferem anátemas e promulgam condenações. O papa, atacado constantemente, é acompanhado por bispos e padres, que, não cantando a mesma ladainha, são logo enquadrados.

As cenas lamentáveis presenciadas em Aparecida no dia da comemoração da padroeira do Brasil são apenas a ponta de um "iceberg". A agressividade e o despudor já se repetem há alguns anos e tornaram a se suceder nos dias seguintes do ocorrido no santuário.

A nova direita católica, que se quer fiel à "igreja de sempre", nada mais faz em seu reacionarismo 2.0 do que replicar o comportamento atomizado contemporâneo, em que o indivíduo acredita ser a régua de tudo.

No mundo do capitalismo estetizado em que tudo é possível para o sujeito sem gravidade, o reacionário vive sonhando um tempo a surgir —ou ressurgir. Constrói sua própria história e teologia, recortando e bricolando fatos, documentos e discursos católicos ao seu bel-prazer. "Do it yourself."

Um dos resultados desse jogo é uma operação que termina por mimetizar a direita católica francesa em sua longa tradição, marcada pelo signo da contrarrevolução e do restauracionismo com pitadas de nacionalismo cristão.

Como o presente e o futuro estão fadados à perdição e à decadência, é no passado que se encontra a sociedade ideal, a nação cristã, em que os valores religiosos se manifestavam em todas as esferas sociais. Mas não só isso. Ao acreditarem que o Brasil tem uma vocação não correspondida, que é o de recristianizar o mundo, defendem a partir da atuação política direta a construção de um Estado católico no país, que cumpriria esse papel. O que descortina, por maior contradição em termos que exista, seu elemento reacionário-utópico.

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