Descrição de chapéu
Cristiano Cipriano Pombo

A vida à venda entre as estações do metrô

Nem todos tinham R$ 10; mas o medo guia o povo e a pochete é o item mais vendido

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Cristiano Cipriano Pombo

Na Folha desde 1996, coordenou o Banco de Dados e é repórter e coordenador de avaliação do Prêmio Empreendedor Social

São Paulo

Quem usa transporte público em São Paulo sabe, em especial na linha vermelha do metrô, que nunca viajará só.

"Atenção, senhoras e senhores, desculpe incomodar a viagem de vocês. Trago o tratamento mais revolucionário para dores nas costas, no pé, no calcanhar, na panturrilha... É a pomada preta. Sucesso certo."

O cheiro de arnica da "revolução" e a lembrança das minhas dores embalam duas estações. Será que ela, numa só aplicação, aliviaria cisões políticas do país, inflação e minhas dores?

Nem dá tempo de buscar respostas, e o anúncio dos melhores fones de ouvidos tomam o vagão. "Funcionam com bluetooth, ajudam em reunião, estudo, ligação, conectam com IOS e Android e duram por seis horas." Está aí a terceira via dos eletrônicos que cumpre uma das jornadas de trabalho da ferida CLT. "Mais alguém? Alguém mais?"

Com fones, será que me entenderia com quem pensa diferente? Mas eis que surge o "melhor descascador de frutas e legumes", com teste ao vivo e alimentos jogados, aos pedaços, num saco plástico. A cena me entristece. O artefato cortante me remete à fome no país —veja os yanomamis— e a esse mal tão ruim à vida quanto a Covid.

E o vagão ainda ganha ares de autoajuda quando o ambulante diz: "É sua chance de comer de forma saudável e fazer boa comida para quem ama". Será que era o descascador da China a solução para eu perder quilos somados na pandemia?

Ambulante vende produto na linha Vermelha do metrô de São Paulo - Rivaldo Gomes - 29.abr.21/Folhapress

Mal vislumbro pratos com minha quase aquisição e já ouço voz fina, à lá "eu podia estar matando, eu podia estar roubando, mas estou a lhe pedir ajuda". A mulher pede pelos filhos que dependem dela, agora sem emprego como 9,5 milhões de brasileiros. Penso nesses filhos que não conheço e sofro por eles como também pelos refugiados, turcos e sírios.

Desperto da tristeza com o apito da estação Sé e o vaivém insano de pessoas. Faltam três estações. Miro o celular, mas, de novo, o shopping trem, atração importada dos vagões da CPTM, rouba a atenção. Um jovem que se diz acossado pelo "rapa" (segurança do metrô) liquida barras de chocolate a R$ 5 para evitar perder tudo. Penso de novo no peso, no ralador e na fome.

A seguir, o item é a pochete que "parece pequena, mas cabe carteira, três celulares, dinheiro e remédio". "Tudo o que você precisa para não perder na mão de vagabundo." Se o Estado não dá segurança, a população se "arma". Não era todo mundo que tinha R$ 10 nem para Pix, mas o medo guia o povo: a pochete é o produto mais vendido.

Quase compro uma para, ao sair do metrô, não enfiar celular e carteira na bolsa —e quase entrar junto—, por segurança ante assaltos e nova cracolândia.

Na estação destino, fico feliz por resistir a impulsos consumistas no shopping metrô. Afinal, não dou conta de tudo. E, se a necessidade do povo for medida pelas ofertas no vagão, não sou só eu.

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