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David Uip

É injusto desconsiderar programas como o Recomeço na cracolândia

Talvez o vice-governador não tenha conhecimento aprofundado sobre avanços

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David Uip

Médico infectologista, é reitor do Centro Universitário da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC); foi diretor-executivo do Incor (HCFMUSP), diretor do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e secretário de Estado da Saúde e de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde de São Paulo

Em entrevista à Folha ("'Situação é caótica', diz vice-governador de SP sobre controle da cracolândia", 31/1), Felicio Ramuth (PSD) teceu algumas críticas sobre as medidas adotadas por gestões anteriores no acolhimento a moradores da região da cracolândia, em São Paulo. E mostrou algumas percepções equivocadas, talvez por desconhecimento do trabalho realizado há anos.

Segundo ele, a quem foi encarregada recentemente a importante tarefa de coordenar as ações na região, "os serviços do estado hoje [em relação à cracolândia] são totalmente desconexos". Talvez o vice-governador não tenha conhecimento aprofundado sobre os avanços conquistados pelo programa Recomeço.

Aglomeração de usuários de drogas na esquina das ruas Conselheiro Nébias e dos Gusmões, no centro de São Paulo - Gabriel Cabral - 3.fev.23/Folhapress

O Recomeço foi criado em 2013 pelo governo paulista justamente para conectar esforços de diversos serviços em busca de um tratamento adequado e humanizado para os dependentes químicos. Uma ação conjunta que envolveu as pastas de Saúde, Educação, Justiça e Cidadania, Desenvolvimento Social e Segurança Pública. Além da integração de setores, uma das prerrogativas sempre foi incentivar a adesão de organizações sociais e prefeitura nas propostas de recuperação e reinserção social dos dependentes, focando na autonomia e melhoria das condições sociais.

Com eixos de prevenção, tratamento, acesso à justiça e cidadania, recuperação e reinserção social e requalificação do território, o Recomeço foi articulado junto à rede pública para acolher a população que sofre com dependência química grave, com foco especial na cracolândia.

Em vários casos, a dependência em drogas como crack e álcool nessa região é tão grande que os indivíduos não conseguem nem ter consciência sobre sua real condição.

Na capital, destaque para o trabalho do Cratod (Centro de Referência em Álcool, Tabaco e outras Drogas), que recebe esses pacientes e realiza tratamento continuado. Em parceria com a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), o Cratod realizou mais de 689 mil atendimentos nos últimos dez anos, somando triagens, acolhimentos e encaminhamentos.

A dependência química é uma doença grave e crônica e, em estágios avançados, é indicada a internação hospitalar visando a estabilização do quadro, com tratamento intensivo, medicamentos e equipe interdisciplinar.

No Cratod há uma unidade de acolhimento e um serviço judicial, composto por médicos e representantes do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para dar maior celeridade às internações involuntárias ou compulsórias indicadas pela própria reforma psiquiátrica para os casos gravíssimos.

Há ainda a Unidade Recomeço Helvétia, localizada no "coração" da cracolândia. Esse espaço recebe pessoas com alto grau de vulnerabilidade social causado pelo uso abusivo de substâncias. Também presta serviços hospitalares de internação de curto e médio prazo para desintoxicação, além de proporcionar moradias monitoradas tanto para egressos de internação como para pacientes em acompanhamento ambulatorial e que desejam permanecer abstinentes.

O Recomeço incentivou ainda o serviço das comunidades terapêuticas (CTs), responsáveis pela reinserção social dos indivíduos. Em 2013, essas comunidades ofereciam 171 vagas para pessoas com dependência química. Em 2019, passaram a ser 1.335. Já o número de leitos de internação de dependentes químicos sofreu expressivo aumento, de 500 para mais de 3.000 em todo o estado.

Foram mais de 23 mil pessoas atendidas somente pelas comunidades terapêuticas nesse período. Um modelo com monitoramento online, que permitiu o controle de ocupação de vagas, bem como o acompanhamento dos serviços prestados pelas CTs para as pessoas acolhidas.

Em resumo, o estado trabalhou organizadamente nos últimos anos com atuação em vários eixos e etapas para cuidar de uma população necessitada, travando uma dura batalha contra essa terrível doença.

É preciso reconhecer esses esforços para não jogar fora todo o trabalho que vem sendo feito, para ajudar essas pessoas a recomeçarem sua vida de maneira digna. Desconsiderar os avanços é simplesmente uma injustiça.

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