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Simone Cristine Araújo Lopes

Na democracia, militares não coexistem com a política

8 de janeiro foi ápice da transgressão de estatuto

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Simone Cristine Araújo Lopes

Advogada e doutora em direito (USP), é professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Chamou-me atenção artigo nesta Folha do general da reserva Otávio Rêgo Barros ("Militares profissionais coexistem com o controle civil", 9/2). Não se pode falar em militar profissional ou não profissional. Ou se é militar ou não é.

Militar é aquele que cumpre normas aos quais está vinculado num Estado. O que viola lei pode até ser destituído do status castrense que, no passado, consistia não apenas em sentença, mas em cerimonial de quebra da espada e retirada das insígnias da patente perante tropa perfilada —a "degradação militar"— e teve, como vítima de provável antissemitismo com conotações políticas, o famoso oficial francês do "caso Dreyfus". Este capitão da artilharia teve como um de seus defensores fora da França o jurista Ruy Barbosa, crítico de militar na política na República Velha.

Manifestantes bolsonaristas jogam pedras na polícia durante protesto golpista e com vandalismo na praça dos Três Poderes - Pedro Ladeira/Folhapress - Folhapress

A pretensão de se separar "militar profissional" de "não profissional", no fundo, remete à política no quartel ou o quartel na política. Não é possível a coexistência de militares e controle civil porque inconstitucional na democracia.

Rêgo Barros afirma que aplicar a ideia de controle civil sobre militares seria indevida importação, inadaptável no Brasil, do pensamento de Samuel P. Huntington. Concordo quanto às distinções de nossa democracia com a dos EUA, mas, se há diferença entre o regime brasileiro e o estadunidense —que trouxe à baila—, ela se deu justamente porque militares brasileiros não cumpriram a lei por diversas vezes no passado e colocaram o país em governos autoritários à revelia do respaldo popular via voto.

Ruy Barbosa escreveu a defesa de Dreyfus no exílio, na Inglaterra. Isso porque advogou no STF habeas corpus para cassar prisões ilegais a opositores do "Marechal Vice-Presidente Floriano Peixoto", como redigiu na petição. Em tese de doutorado, fiz notar que essa nomenclatura dada ao posto de Floriano pelo advogado baiano não era vã. Havia crítica implícita contra a inconstitucional posse presidencial de Floriano. Isso porque a Constituição pós-golpe republicano dispunha que, em caso de vacância na Presidência antes da primeira metade do mandato, convocar-se-ia eleição. Marechal Deodoro renunciou no primeiro ano de seu mandato, e Floriano se impôs, rechaçando o "controle civil".

Em 1969, o marechal Costa e Silva sofreu derrame e ficou impossibilitado para o cargo. A Constituição de 1967 dispunha que o vice-presidente civil Pedro Aleixo deveria assumir, o que foi solapado por ato que empossou Junta Militar que não recebeu voto na forma direta ou indireta.

Note-se que nestes momentos históricos houve franco descumprimento de norma constitucional elaborada pelos próprios militares, após promoção de rupturas institucionais traumáticas.

O 8 de janeiro foi o ápice do descumprimento do estatuto militar. Isso porque, antes do vandalismo, várias regras foram quebradas sem a devida censura do competente para preservar a disciplina na caserna.

Afinal, "a palavra convence, o exemplo arrasta". Normas legais do país preveem que, em caso de desacordo com o resultado eleitoral, há entidades aptas a apresentar ação judicial com as provas cabíveis para o êxito da pretensão processual. De modo que a solução "intervenção" —como visto em faixas de manifestantes à frente de quartéis país afora— é ilegítima e deveria ter sido, de pronto, rechaçada pelos comandos das áreas militares ocupadas.

Logo, não cabe coexistência de controle civil com militares, pois o militar é cumpridor de leis. Se membros das Forças Armadas caíram na tentação de se imiscuir em política, causando quebras institucionais que se conhece à luz do direito e da história, isso é apenas mais um motivo para que se faça restabelecer a supremacia constitucional e aplicar o código de ética militar —que é claro ao dispor sobre a muralha que menciona o coronel da reserva Marcelo Pimentel, onde explica que "na democracia, é simples assim". A muralha que separa a política do meio militar, se rompida, faz mal às instituições militares e ao país.

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