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Anuar Nahes

Memórias de Bagdá

Guardas logo liberavam os bloqueios ao reconhecerem a bandeira brasileira

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Anuar Nahes

Ex-embaixador do Brasil no Iraque

Já se vão 11 anos desde que eu e um oficial de chancelaria desembarcamos em janeiro de 2012 no aeroporto de Bagdá, uma relíquia dos anos 1980 protegida por um pesado esquema de segurança. De lá fomos conduzidos a um "hotel-abrigo" na chamada Zona Verde, a mais segura da cidade, onde aguardaríamos a chegada de outros três colegas e o término das obras de readequação dos imóveis já alugados que iriam abrigar a nova sede da Embaixada do Brasil.

Duas casas contíguas formavam essa sede, o nosso "compound", situado num dos melhores bairros residenciais da capital iraquiana. Era protegido por altos muros e blocos de concreto, cercas de arame farpado, franco-atiradores nos tetos e duas dezenas de guardas armados, que trabalhavam em três turnos, treinados e comandados por uma empresa contratada para fazer a segurança da embaixada.

Loja esportiva em Bagdá, no Iraque, exibe foto do ex-jogador Ronaldo Fenômeno - Suhaib Salem - 29.nov.10/Reuters

Assim protegido, viveria os próximos 29 meses naquela que já fora a mais rica e desenvolvida capital do mundo árabe. Os deslocamentos para compromissos oficiais e sociais eram feitos em três jipes blindados, escoltados por homens fortemente armados. Cada atividade externa deveria ser informada com 24 a 48 horas de antecedência ao chefe da segurança. Ele colhia dados sobre a situação nas ruas e a movimentação dos grupos paramilitares na cidade e nos aconselhava a sair ou não.

Medo nunca senti, mas precaução e responsabilidade nunca me faltaram. Sempre segui à risca as diretrizes da empresa. Mesmo assim, era preciso também contar com boa dose de sorte, pois não foram poucas as vezes em que nosso comboio se viu estagnado no caótico trânsito de Bagdá, rodeado de veículos que bem poderiam ser carros-bomba. Frequentemente se ouviam explosões em diferentes pontos da cidade, algumas delas com força suficiente para fazer vibrarem as janelas das duas casas. Certa vez, uma grande explosão, em pleno horário de trabalho, destruiu a fachada do Ministério da Justiça, que sempre contornávamos para ingressar na Zona Verde. Por sorte não passávamos por lá naquele momento.

Apesar das dificuldades cotidianas e dos perigos, guardo comigo boas lembranças de Bagdá: o excelente nível profissional dos meus interlocutores nos ministérios e em outros órgãos do governo local e o carinho que a população em geral nutria pelo Brasil. Ao ponto de que os incontornáveis bloqueios das ruas e avenidas nos eram rapidamente abertos tão logo os guardas reconheciam a bandeira brasileira.

Nos escritórios que visitei, funcionários sunitas, xiitas, cristãos, árabes e curdos, não raro com doutorados na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá, trabalhavam lado a lado, cada qual com sua religião e vestimenta, enfrentando horas no trânsito para chegar a seus escritórios, desafiando ameaças de gangues armadas e sujeitos às mortíferas explosões de bombas nos terminais de ônibus e pontos de táxis, geralmente nos horários de pico.

Brava gente! A exploração da fé, a contraposição das etnias e a exacerbação de ressentimentos e do ódio ficavam por conta dos senhores da guerra, visto que à época ainda não havia redes sociais para canalizá-las e manipulá-las. Uma vez perguntei a um colega sênior iraquiano se a ordem perversa dos tempos de Saddam não seria preferível ao caos instalado após a derrubada do seu regime. Ele me respondeu, sem titubear: "Embaixador, na época de Saddam nem sequer estaríamos conversando sobre isso a sós!".

Passat brasileiro circula pelas ruas de Bagdá em 2003 - Juca Varella - 20.mar.03/Folhapress

Também tive a satisfação de receber jornalistas, acadêmicos e os primeiros empresários brasileiros que corajosamente começavam a visitar o Iraque em busca de novas oportunidades comerciais. Lá o Brasil havia feito, com sucesso, sua primeira ofensiva comercial e empresarial no Oriente Médio. Os automóveis Passat, os frangos da Sadia e o bom trabalho das construtoras brasileiras ainda estavam presentes na memória da população local. Mas as circunstâncias haviam mudado radicalmente nos dois países e, consequentemente, a maneira de fazer negócios. A concorrência agora era grande, pois os antigos ocupantes sempre eram agraciados com a parte do leão nos grandes projetos de reconstrução do país. Depois, subcontratavam.

No início de 2014, a guerrilha do Estado Islâmico, até então restrita às áreas onde se concentravam os órfãos de Saddam apeados do poder em 2003, começou a se aproximar de Bagdá, numa prévia da violência absurda que engolfaria o Iraque nos anos subsequentes.

Cansado da tensão, da solidão e do confinamento, pedi minha remoção ao Itamaraty, no que fui prontamente atendido. Deixei Bagdá em julho de 2014, com o sentimento de dever cumprido.

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