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Angélica Mendes

Chico Mendes sonhava com outro futuro

Enchente histórica no Acre expõe a urgência da conservação da Amazônia

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Angélica Mendes

Bióloga e doutora em ecologia e evolução, é ativista socioambiental e neta do líder ambientalista Chico Mendes

O estado do Acre, que tem histórico socioambiental e é considerado um berço do movimento dos povos da floresta, está passando por uma emergência climática.

Sou Angélica Mendes, natural de Rio Branco, neta de Chico Mendes, mãe da Lívia, bióloga e doutora em ecologia e evolução, ativista socioambiental voluntária no Comitê Chico Mendes e analista de conservação no WWF-Brasil.

Imagem colorida mostra dois homens andando na enchente na cidade de Rio Branco, no Acre. A água chega na altura do peitoral dos dois homens que aparecem sem camisa.
Homens caminham por enchente que atinge a capital Rio Branco - Divulgação/Governo do Acre - Divulgação/Governo do Acre

Nestes meus 33 anos de vida, nunca vi o que ocorreu recentemente no Acre. A água alcançou a casa do meu avô, que já resistiu a uma tentativa de apagamento histórico nos últimos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL). Casinha azul e rosa que trago tatuada em meu braço e que simboliza mais do que um museu que conta a história de um mártir: é a casa de um avô que me foi roubado de forma violenta.

A água também levou casas que foram a história de outras mais de 30 mil famílias só na capital, Rio Branco. Invadiu de forma tão rápida que muitos não conseguiram retirar seu bens. Essas famílias, assim como o meu avô, tinham apenas o básico para sobreviver.

Desta vez, as enchentes alcançaram lugares que antes não chegavam. Quem está desamparado em abrigos são as pessoas mais pobres das periferias amazônicas, que cresceram no entorno dos rios e igarapés. Quem está implorando por alimento são aqueles que, mesmo com a casa quase debaixo d’água, se recusam a deixar o pouco que têm na esperança de subir seus pertences e não serem atingidos.

Ruas alagadas em bairro de Rio Branco (AC) - Pedro Devani - 25.mar.23/Secom - Secom

Essa água não leva apenas objetos materiais, ela sai arrastando na lama a dignidade das pessoas, que entram em desespero quando perdem o pouco que já tem.

A ciência já mostrou que, com o aumento do aquecimento global, eventos climáticos extremos, como as chuvas que devastaram o Acre agora (mas que há pouco fizeram vítimas também em São Sebastião e Manaus) serão cada vez mais frequentes. O relatório síntese do IPCC, divulgado no último dia 20, já apontava que as políticas de mitigação, que visam a redução das emissões de gases de efeito estufa, e de adaptação, que preparem estruturalmente cidades, estados e nações para lidar com as consequências das mudanças climáticas, não têm sido desenvolvidas de forma suficiente.

E o que as cenas dos últimos dias nos mostram é que esses eventos extremos afetam de forma desigual mulheres negras, pessoas periféricas, povos indígenas e comunidades tradicionais. A injustiça climática escancara, mais uma vez, o tamanho da desigualdade social que vivemos.

Neste momento, são eles que perdem tudo. Aqui no Acre falta comida, casas foram destruídas e muitos sonhos estão debaixo d’água. É injusto que a Amazônia, com tamanha biodiversidade, que contribui para a regulação do clima e da qualidade de vida de pessoas em tantos lugares do mundo, viva na pele as consequências da emergência climática.

As cenas tristes que temos visto no estado são mais um claro recado às autoridades: é urgente conservar a Amazônia, barrar o desmatamento, proteger nossa população e combater as desigualdades.

As mudanças climáticas estão aí para nos mostrar, mais uma vez, que a sociedade igualmente justa que meu avô sonhou quando escreveu a Carta aos Jovens do Futuro está longe de se tornar realidade.

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