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Fernando de Mello Franco

A arte de tornar as evidências invisíveis

Substitutivo do Plano Diretor de São Paulo apenas prioriza a produção imobiliária

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Fernando de Mello Franco

Arquiteto e urbanista, é professor da FAU Mackenzie e diretor do Instituto ZeroCem; ex-secretário Municipal de Planejamento Urbano de São Paulo (gestão Fernando Haddad, 2013-16)

A produção imobiliária tem a primazia no debate do processo de revisão intermediária do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, formalizado através do projeto de lei 127/23. Mas a cidade é mais do que isso, e o PDE também versa sobre inúmeras outras dimensões.

Na disputa sobre a regulamentação dessa produção, o adensamento vem sendo equivocadamente interpretado enquanto adensamento construtivo, ou seja, quantidade de metros quadrados de construção sobre unidade de solo. O conceito de densidade populacional, quantidade de pessoas que efetivamente habitam o espaço construído da cidade, não consegue ser incorporado na nossa disciplina de planejamento. Isso significa que o foco está dado à produção imobiliária, não às formas de reprodução da vida, amparadas pela cidade.

Assim, temas relevantes como a agenda climática não recebem o merecido destaque. Ainda que exista menção à relação entre o PDE e o posterior Plano de Ação Climática, o PL não avança. Não propõe diretrizes de impacto nos Projetos de Intervenção Urbana, todos eles situados sobre o sensível território das várzeas urbanas, assim como nas ações de adaptação climática que se sobrepõem aos territórios vulneráveis das nossas encostas.

Disputam-se os parâmetros de altura dos edifícios nos eixos e bairros. Mas não se escuta aqueles que alertam para os impactos dos gabaritos no clima, paisagem, morfologia, espaço público e memória.

A questão de como o PDE pode ajudar na transição climática não se impregna ao debate. Parece haver uma negligência em relação à policrise que nos afeta em contexto comprovado de antropoceno.

O substitutivo do projeto de lei foca na ampliação das áreas passíveis de adensamento construtivo, na majoração dos coeficientes de aproveitamento, no aumento dos gabaritos e vagas de automóvel. Mas até quando a cidade precisará crescer? Quais as melhores alternativas para se enfrentar o ônus excessivo do aluguel, principal fator do nosso déficit habitacional? A única estratégia é mais produção, ou será que podemos reabilitar parte substantiva daquilo que já fizemos historicamente?

Os dados estatísticos do IBGE permitem constatar um processo de desmetropolização do Brasil. Projeções do Seade apontam que a taxa de crescimento da população do município de São Paulo tende a zero. A estagnação ocorrerá entre 2035 e 2040. A partir de então, decrescerá. Nossa pirâmide etária se inverterá. Haverá impacto na demanda por serviços e moradia, sugerindo que a cidade se reconfigurará.

Desde a aprovação do Plano Diretor, em 2014, foram lançadas mais de 400 mil unidades residenciais, de acordo com dados do Secovi (sindicato da habitação). Esses números não acarretaram na redução do déficit habitacional. Portanto, vale perguntar: para quem se destina essa produção? O que faremos com tudo isso após a passagem do pequeno prazo histórico de duas décadas?

O impacto do PDE vem sendo monitorado pela prefeitura e por inúmeras entidades acadêmicas e profissionais. Para subsidiar a revisão do plano, essas entidades divulgaram um conjunto significativo de análises debatidas e sistematizadas pelo Fórum SP23.

O substitutivo do PL 127/23 não busca lastro nos dados elaborados. Em diversos artigos, ele parece negar todo o esforço de análise realizado pelos principais quadros técnicos e acadêmicos da nossa cidade. Tende a aprisionar a regulação na sua história conflituosa e errática de priorização da produção imobiliária em detrimento das distintas dimensões que incidem na qualidade da vida urbana.

Esse substitutivo realiza a proeza de caracterizar o processo de revisão do Plano Diretor como a arte de tornar as evidências invisíveis. O impacto será a regressão em direção a um futuro com justiça socioambiental que garanta o bem-estar a toda a população paulistana.

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