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Luiz Guilherme Piva

O 'gaslighting' dos juros altos

Há sempre um editorial ou artigo nos desmentindo: "Calma, vocês estão vendo coisas"

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Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de “Ladrilhadores e Semeadores” (Editora 34) e “A Miséria da Economia e da Política” (Manole)

O termo "gaslighting" passou a significar "manipulação" depois do filme "Gaslight", de 1944, em que o marido tenta convencer a esposa de que ela está louca por afirmar que viu as luzes escurecerem. Ela estava certa, mas ele, que provocara o escurecimento em práticas ilícitas, a desmente. E repete o procedimento com posições de objetos e enredos da memória. O objetivo é, pela atemorização quanto à sua sanidade, fazer a esposa descrer do que vê. Ela se atormenta, ele dorme tranquilo.

Um nariz de cera puxa outro. No livro "A História do Dinheiro", o antropólogo Jack Weatherford diz que uma das primeiras definições dos juros é: "O juro é o preço da angústia".

Boneco improvisado representa o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, em protesto de sindicatos e movimentos sociais contra as altas taxas de juros, na avenida Paulista, em São Paulo - Amanda Perobelli - 20.jun.23/Reuters - REUTERS

Vários de nossos bancos são muito angustiados. Seu parâmetro básico de ansiedade é dado pelo Banco Central, com a Selic anual a 13,75%, frente à inflação de 5%. Dizem correr muitos riscos ao pôr dinheiro nas mãos de pessoas que querem investir, produzir, trabalhar, consumir —essas atividades perigosas que não compensam o que eles gastam em ansiolítico. Por isso se medicam com os tranquilizantes (de tarja preta) títulos da dívida pública (que são trivalentes: pagam muito bem, têm liquidez diária e dão garantia absoluta) e na posologia voraz de sua dependência.

O governo reclama: tem que se dedicar a outros pacientes, que teimam em passar fome. Reclamamos nós, que carregamos o risco de tentar manter, melhorar e estender a vida de forma digna. E denunciamos: "Os juros estão muito altos!".

Mas o BC, os rentistas e seus PhDs em economia nos ensinam, com a calma de quem lida com insanos, que estamos delirando e não vendo a realidade da "melhor ciência". Argumentamos com exemplos concretos —retrucam que são ilusórios. Puxamos casos do passado —afirmam que nossa memória nos trai. Invocamos comparativos externos —fazem "tsk, tsk", balançam a cabeça: estamos em estado terminal.

A manipulação da "melhor ciência" é tentar demonstrar que os juros altos são culpa do governo e dos brasileiros comuns. Afinal, a "gastança" gera déficit, quando feita pelo governo, e inflação, quando por nós.

Daí que os juros altos visariam: a) ajudar o governo a vender seus títulos públicos com remuneração alta como profilaxia contra a angústia (vai que, em pânico, eles fogem do país, não é?) daqueles que se dispõem a nos salvar do "caos fiscal"; e b) nos preservar —ao travar investimentos, empregos, consumo, alimentação e outras farras— da vida desregrada e letal: melhor morrermos sãos, sussurram, evitando parecer que nos contrariam; afinal, os alienistas nunca sabem a reação de pacientes irritados.

É de tal proporção a manipulação no Brasil hoje que, mesmo que vejamos as luzes escurecerem, ou seja, a economia se retrair, os investimentos recuarem, o desemprego crescer, o crédito escassear, as lojas e indústrias entrarem em crise, a dívida de pessoas e empresas explodir e a concentração de riqueza se elevar (os juros são pagos aos poucos rentistas com o dinheiro arrecadado da maioria trabalhadora que paga imposto) e anunciemos o apagão iminente, há sempre um editorial, artigo ou paper nos desmentindo: "Calma, vocês estão vendo coisas".

Insones, esfregamos os olhos. Eles, que defendem ou praticam os atos causadores do tremor das luzes, repousam, como os justos, no sono.

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