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Frederico de Almeida

O notório saber jurídico também é político

Para chegar ao STF, importa a capacidade do candidato de construir relações políticas

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Frederico de Almeida

Professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do PolCrim - Laboratório de Estudos de Política e Criminologia

Em artigo publicado nesta seção em 21 de junho ("O Supremo merecia mais respeito"), José Eduardo Faria se posicionou contra a indicação do advogado Cristiano Zanin para uma das cadeiras do Supremo Tribunal Federal. Citando dados de minha tese de doutorado sobre o perfil das elites jurídicas brasileiras, Faria considera que o indicado de Lula, assim como os ministros indicados por Bolsonaro, não possuem "cultura jurídica" nem sabem "pensar com método".

Os dados de minha pesquisa mencionados por Faria foram coletados nos currículos de ministros do STF em todo o período republicano. Como aponta Faria ao mencioná-los, constato em minha tese que em período mais recente predominam ministros com títulos de mestrado e doutorado e experiência docente em cursos de direitos reconhecidos no campo jurídico. Diferentemente do que sugere Faria, porém, a verificação dessa predominância não constitui "evidência de que atendiam ao requisito constitucional de notório saber jurídico" nem diz qualquer coisa, por si só, sobre a qualidade de seu conhecimento jurídico.

Na verdade, esses dados revelam que as exigências constitucionais de "notório saber jurídico" e "reputação ilibada" são concretizadas em processos políticos e históricos. A Constituição de 1891 falava apenas em "notável saber", e Floriano Peixoto aproveitou a brecha para indicar três ministros sem formação jurídica para o STF, todos eles recusados pelo Senado. Constituições seguintes especificaram que deveria ser jurídico o saber notório, mas isso não se traduziu como exigência de determinados títulos ou experiências.

O que os demais dados de minha tese demonstram é que o que importa para um jurista se tornar ministro do STF é sua capacidade de construir relações políticas a partir de sua experiência jurídica. Essas relações podem ser de proximidade pessoal com dirigentes políticos ou com outras elites jurídicas, mas podem vir também de posições anteriores como assessores jurídicos de políticos, partidos ou órgãos públicos.

Elas podem ser estabelecidas pessoal e diretamente pelo candidato ou mediada por outros juristas quando uma vaga é aberta no tribunal. Também importa ser homem, branco, originário das regiões Sul ou Sudeste e ter cursado as faculdades de direito mais antigas do país —o que não diz nada sobre a qualidade jurídica da formação recebida nesses cursos, mas diz muito sobre o perfil sociopolítico dos seus egressos.

Cristiano Zanin durante sabatina no Senado - Lúcio Távora - 21.jun.23/Xinhua


Mesmo nas indicações de magistrados de carreira ou originários de cortes inferiores não se pode ignorar a política feita para que eles chegassem a esses tribunais e pudessem ser indicados ao STF. Nomear um jurista "técnico" ou de carreira, com poucos atributos políticos evidentes, não significa que esse ministro seja "apolítico", mas sim que a escolha presidencial observou e se alinhou em relação aos grupos que disputam poder no campo jurídico.

Títulos acadêmicos e docência em universidades não dizem nada sobre a qualidade do pensamento jurídico e o rigor científico dos ministros do STF. Quando coletei os dados de minha pesquisa, vários dos ministros que eram docentes em universidades sequer possuíam currículo na plataforma Lattes, repositório incontornável na identificação da comunidade científica brasileira. Poucos deles tinham produção científica consistente e todos conciliaram a atividade docente com intensas atividades profissionais, o que é um problema histórico do ensino e da pesquisa em direito no Brasil.

Sessão plenária do STF em 22.jun.23 - Nelson Jr./SCO/STF

A predominância recente de mestres, doutores e docentes entre ministros do STF revela uma nova estratégia de reprodução das elites jurídicas diante do aumento do número de faculdades e de graduados em direito no Brasil desde os anos 1960. Em um país desigual e pouco escolarizado, ser bacharel em direito era uma distinção; em um país cheio de bacharéis em direito, é preciso algo a mais para distinguir as elites do "baixo clero jurídico" a que se refere Faria em seu artigo.

O processo de escolha de ministros do STF esconde, sob as expectativas de imparcialidade, notório saber jurídico e reputação ilibada, os interesses políticos que sustentam as candidaturas. Baseado formalmente na livre indicação do presidente da República e em uma sabatina meramente ritual pelo Senado, esse processo apenas esconde a política que é feita em gabinetes, plenários e nos espaços de socialização das elites brasileiras.

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