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Caroline Heinz

A flor de Cannabis e o descompasso entre políticas públicas e sociedade

Importação continua proibida, mas 76% da população aprovam uso medicinal

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Caroline Heinz

CEO da FlowerMed e da Sphera, atua no mercado de Cannabis medicinal há mais de dez anos

O ano de 2023 mostra mais um episódio do clássico descompasso entre a formulação de políticas públicas e a percepção da sociedade brasileira em matéria de acesso à saúde. Junto com a proibição da Anvisa à importação de flores da Cannabis com receita médica, pesquisa do Datafolha apontou que a legalização da planta como remédio é aprovada por 76% dos entrevistados.

Para além da pressão política de uma parcela conservadora que insiste em disseminar desinformação e preconceitos sobre o uso da Cannabis medicinal, há interesses comerciais que não podem ser ignorados. A alegação da agência para o veto é fundamentada em três pontos. O primeiro deles é que não há evidências científicas que comprovem a segurança. A fragilidade do argumento é inversamente proporcional ao número crescente de pesquisas científicas que atestam o contrário –há pelo menos 400 delas disponíveis para consulta no PubMed, base de dados mantida pela Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos.

Cannabis à venda no festival 'Cannabis no Parque', em Bogotá, Colômbia - Daniel Munoz - 7.out.23/AFP

Os críticos argumentam que o uso de óleos e derivados da Cannabis, que continuam permitidos, não é igual ao da in natura. E de fato não é. Médicos têm combinado o tratamento das flores com os óleos para alívio dos sintomas em patologias que necessitam de uma solução imediata, como crises de ansiedade, ataques de pânico e Parkinson, além de dores musculares, ósseas e relacionadas a tratamentos oncológicos.

Os óleos levam de 40 minutos a uma hora para fazer efeito, enquanto a vaporização é instantânea. Além disso, o uso de flores tem sido responsável por uma diminuição significativa do uso de opioides pelos pacientes tratados, reduzindo dependência, efeitos colaterais indesejados e o risco de overdose que esses medicamentos promovem. Nesse ponto, parece haver má vontade em não esclarecer à população que o uso medicinal da planta se dá pela vaporização, com o uso de dispositivos médicos aprovados para esta finalidade, e não pela combustão do cigarrinho que vemos por aí.

Por fim, a Anvisa alega que as flores teriam alto potencial de desvio para fins ilícitos. Mas o custo do tratamento não pode ser considerado acessível. Importados, os produtos são cotados em dólar e têm frete internacional. São plantas especialmente cultivadas para retirar os efeitos psicoativos. Em outras palavras, não são os pacientes, munidos de receitas médicas e que pagam caro para ter acesso aos tratamentos, que alimentam o tráfico e o descaminho. E para combater isso existe a polícia, não a Anvisa.

Tijolos de maconha apreendidos em Juiz de Fora (MG) - Divulgação - 26.jun.23/PM-MG

Lamentavelmente, parte da indústria parece estimular a proibição e, assim, prejudicar cerca de 30 mil brasileiros que apresentaram melhorias significativas com as flores. Dados da consultoria Kaya Mind mostram uma alteração relevante das solicitações de importação à Anvisa entre junho e agosto.

Antes do veto, empresas dedicadas ao mercado in natura chegavam a responder por 15% dos pedidos de autorização protocolados na agência. Havia até então uma clara substituição de alguns produtos de prateleira, geralmente óleos dos tratamentos de longo prazo, por flores utilizadas nas crises agudas. Ainda assim, nada que alterasse a lógica do processo ou estivesse em desacordo com a prescrição dos médicos.

O quadro mudou e favoreceu uma corrida aos tribunais. Nesse meio tempo, cresceu no Superior Tribunal de Justiça o número de concessão de salvo-condutos para o cultivo caseiro de plantas. Ainda que submetidas à fiscalização, as permissões de plantio fundamentadas em habeas corpus são um componente a mais na confusa equação e não contam com a garantia de segurança e eficácia que empresas dedicadas ao mercado oferecem.

Folha de maconha de plantação caseira na zona norte do Rio - Ricardo Borges/Folhapress

A lógica comercial por vezes é perversa, mas é real e não pode ser ignorada. No mercado de saúde, no entanto, ela nunca deve superar a pauta humanitária. Enquanto houver empresas mais preocupadas com o market share do que com a qualidade de vida de seus pacientes e autoridades públicas escondidas pela fumaça da desinformação e do preconceito, continuaremos reféns do obscurantismo.

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