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Estevão Ciavatta

Língua brasileira

Como bem disse Noel Rosa, 'já passou de português'

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Estevão Ciavatta

Diretor e autor de trabalhos como “Santos Dumont” (2019), “Amazônia: Sociedade Anônima” (2019) , “Made in China (2014)” e “Nelson Sargento no Morro da Mangueira (1998)”

O nome de uma língua é geralmente o nome de seu povo porque ela é o traço definidor de sua identidade cultural e da sua experiência no mundo. Mas o Brasil vive uma situação linguística sui generis: ao mesmo tempo em que 98% da população fala o mesmo idioma, somos um país com uma das maiores diversidades linguísticas do mundo, com mais de 170 línguas nativas, europeias, africanas e asiáticas faladas no nosso território. Então, o que nos distingue como nação?

Essa pergunta se faz ainda mais importante porque somos um país falante de uma língua adventícia que tem pouco mais idade que o Brasil. A primeira vez que aparece a denominação "língua portuguesa" é num texto de 1430, apenas 70 anos antes dos portugueses desembarcarem no Brasil. Nos 300 primeiros anos do reino de Portugal se falava o galego, nossa protolíngua. Nunca existiu o português arcaico ou histórico.

Existia o galego, porque outra não havia. E no galego já se falava, por exemplo, "eu vi ela" no lugar de "eu a vi", ou "onte", como se fala "ontem" em partes do Nordeste brasileiro, ou até "seu carro" sem o uso do artigo "o seu carro", algo que comumente os portugueses reclamam da gente.

Isso traz outras reflexões sobre as imposições do português padrão sobre o falar brasileiro. Você já se pegou alguma vez pensando "essa pessoa não sabe falar português!" ou "ela não fala nem português direito!"?

Como alguém pode não saber falar a própria língua que fala? Muito do que a gente acha que é errado dentro da língua brasileira é fruto da nossa história. Nosso falar, durante os mais de 300 anos de comércio de escravizados, foi moldado numa ligação direta, sem passar pela metrópole, entre o Brasil e a África. Se nas línguas Bantu não tem lateral palatal "lh", a palha virou "paia" e "trabalho" virou "trabaio". Também, até o século 18, a língua mais falada no Brasil era o tupi, onde o plural não se dá no substantivo. Quando um paulista fala "dois pastel" ou "os mano", ele está falando como seus antepassados falavam a língua geral paulista. E o Brasil é continental: por onde andamos, nossa história nos apresenta diferentes sotaques, vocabulários e formas de falar. Então, que língua falamos nós, brasileiros?

Se juntarmos a língua portuguesa formal com a riqueza do falar regional e a enorme diversidade de línguas faladas no Brasil, pensar uma identidade cultural brasileira é uma tarefa quase impossível, pois ficaremos perdidos num mar de possibilidades. Essa questão ficou rondando a minha cabeça durante a feitura do meu documentário "Línguas da Nossa Língua". Durante os quatro anos de pesquisa, filmagem e edição, fui entendendo que a nossa identidade, e a nossa forma de estar no mundo, é justamente a nossa diversidade. E o que melhor representa essa riqueza cultural do nosso país é mesmo a nossa língua. Uma língua que mistura quimbundo, inglês, tupi, francês e yorubá —e que deve ter o nome do seu povo!

Noel Rosa bem disse: "já passou de português". Cutuca o moleque, guri! Sem pensar na carpideira. Já falamos uma língua de tantas línguas que se chama brasileira.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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