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Alexandre Kalache

Quando o direito a viver e envelhecer é negado

Moisés pensou ter achado segurança e respeito em uma tribo criminosa

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Alexandre Kalache

Médico gerontólogo, é presidente do Centro Internacional da Longevidade e ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS)

"Nos verdejantes morros do Rio

Cresce uma mancha amedrontadora.

Os pobres que para ali vão

E nunca regressam à casa."

lizabeth Bishop, 1964

Moisés tinha 21 anos, mas parecia e se comportava como alguém muito mais jovem. Ele não morreu imediatamente quando foi baleado no cabeça. De forma implausível, ele ainda se agarrou à vida, sozinho, por mais um dia. Finalmente sucumbiu. Seu corpo não foi reclamado por semanas, seus parentes, desinformados. Em seu rastro pela vida Moisés deixou apenas uma tênue ondulação. É fácil pensar que Moisés fosse apenas mais um garoto com uma arma na mão, cujo final viesse a ser inevitável. Mais fácil ainda é simplesmente não pensar nele.

Eu o conhecia desde a infância, quando veio do Ceará para o Rio, reencontrar sua mãe. Veio do interior rural e nunca tinha visto uma praia. Foi para mim um grande privilégio apresentar Moisés, então com cinco anos, à areia e ao mar pela primeira vez. Sua admiração e alegria naquele dia foram puras, inesquecíveis.

À medida que Moisés crescia, ficava cada vez mais claro que ele não estava equipado para sobreviver ao ambiente tóxico e excessivamente masculinizado da favela onde morava. Não sei nada sobre sua sexualidade. Nem sei se ele próprio sabia. Mas eu sei que ele era visto como "afeminado" e sujeito a todo o tipo de bullying e homofobia. Em determinado momento de sua adolescência, ele foi fisicamente contido e tanto álcool foi forçado, garganta adentro, por outras crianças, que ele teve uma parada cardíaca.

Moisés fez várias tentativas de fugir da comunidade, de desaparecer. Por um tempo, viveu pelas ruas do centro, invisível, rejeitado. Em outra ocasião, tais eram as ameaças à sua vida, ele fugiu de volta para o Ceará e buscou abrigo entre parentes. Por um tempo ele pareceu florescer ali, mas, seja pelo fascínio da cidade grande, seja pelas estranhezas do campo, Moisés acabou encontrando o caminho de volta.

Cena do filme Cidade de Deus - Divulgação

Se às pessoas forem negados segurança e respeito, elas os procurarão em outros lugares. Como tantos jovens antes dele, Moisés pensou que tinha encontrado esses fundamentos em uma tribo criminosa. Na favela, pertencer a tais tribos pode trazer perigo. Rejeitá-las também.

Em historicidade e escala, mais do que em qualquer outro lugar, esta é uma tragédia brasileira –talvez a Grande tragédia brasileira. Nós zombamos e brutalizamos aqueles que são gentis, encurralamo-los em uma sobrevivência antinatural e acabamos por martirizá-los através do desespero, jogando-os à imprudência e à criminalidade. Nós, brasileiros, terminamos por devorar nossos jovens. A eles a promessa de uma longa vida jamais será alcançada.

Moisés foi assassinado em setembro, no Rio de Janeiro.

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