Descrição de chapéu
Patrícia Valim

Até quando pesquisadoras-mães serão desrespeitadas no Brasil?

Parecer do CNPq expõe anacronismo das agências de fomento à pesquisa no Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Os termos de um parecer do CNPq sobre um projeto de pesquisa para obtenção de bolsa produtividade submetido ao órgão pela professora-doutora Maria Carlotto, pesquisadora e docente da UFABC, chocou boa parte da comunidade científica brasileira.

Nele, o/a parecerista reconheceu o mérito da pesquisa, mas negou a bolsa à pesquisadora em razão da ausência de estágio de pesquisa no exterior, decorrente das gestações que "atrapalharam" a carreira da docente. Não foi o único parecer misógino e assediador explicitado nas redes sociais nos últimos dias, infelizmente. Entretanto foi o mais paradigmático do anacronismo das agências de fomento à pesquisa científica no Brasil.

Agência teve 11% de seu orçamento contingenciado neste ano
Sede do CNPq - CNPq/BBC News Brasil

Em nota, o coletivo de pesquisadoras-mães Parent in Science, com atuação nacional e reconhecimento internacional, repudiou o caráter misógino e assediador do parecer e cobrou uma resposta do CNPq em relação à falta de consistência e transparência nos critérios de avaliação adotados.

Vladimir Safatle, professor titular da USP, chamou atenção para o fato de que o referido parecer foi escrito por pares, isto é, um/uma colega de trabalho considera que a maternidade "atrapalha" a carreira científica da candidata. Débora Diniz, por sua vez, professora e pesquisadora da UnB, reforçou as críticas acima e foi além ao chamar atenção para o caráter colonialista do parecer ao considerar o estágio de pesquisa no exterior como algo central para a validação de uma pesquisa científica.

Além de desconsiderar a decisão da pesquisadora, a pandemia e a impossibilidade de viajar e o debate incontornável sobre decolonialidade das ciências e outras epistemologias, o parecer também desconsidera duas questões fundamentais para as pesquisadoras-mães.

Primeiro são as condições materiais. Em um contexto sem reajuste salarial para o funcionalismo público desde 2016 e com corte de verbas para as universidades públicas e pesquisas científicas também desde 2016, as agências de fomento não cobrem os custos totais de uma pesquisadora-mãe e de seu(s) filho(s) para um estágio de pesquisa no exterior, sobretudo para as pesquisadoras-mães-solo. Sem isso, por que conferir centralidade a um estágio de pesquisa no exterior para obtenção de uma bolsa de pesquisa se a internacionalização da nossa produção científica pode ser avaliada por meio de publicações em periódicos internacionais e inserção remota em renomados grupos de pesquisas do exterior?

0
Entrada lateral da UFABC (Universidade Federal do ABC) - Karime Xavier/Folhapress

A pergunta não é retórica e diz respeito à segunda questão: por que transferir para nós o ônus da falta de recursos públicos e de critérios transparentes e específicos para o fomento da produção científica das pesquisadoras-mães, impondo-nos a violência de uma espécie de "escolha de Sofia" entre os nossos filhos/famílias e a carreira científica? Por que tentar transformar a opção da nossa maternidade em um problema, convenientemente usado para desqualificar a nossa produção, se o regime de dedicação exclusiva da nossa carreira diz respeito à esfera do nosso trabalho, não à nossa vida toda? Apesar da ausência de bolsas de pesquisa, nossos currículos Lattes demonstram que não há contradição entre ser mulher-mãe e professora-pesquisadora.

Mas há contradição na nota do CNPq sobre o conteúdo do parecer e o item do edital para a bolsa produtividade: "a concorrência será sensível às questões de gênero e maternidade". A pesquisadora não precisaria contar com a sensibilidade de um/uma parecerista se o CNPq fizesse aquilo que nos cobram com o pretexto da internacionalização: institucionalizar os critérios adotados pelas agências de fomento do exterior, conforme as diretrizes do Global Research Council (GRC), tais como a paridade para a concessão de bolsas de pesquisa, políticas de permanência e critérios de avaliação específicos para pesquisadoras-mães em todos os níveis da carreira acadêmica.

Sem isso não há internacionalização possível, senhores.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.